Wednesday, December 24, 2008

Transverso II

O desejo da beleza,
sutis percepções.

a imagem
delineio
pontas dos dedos
arrepio
interpretação prazer e as curvas

o impulso e a meia-lua
o poente na janela
expiração sorriso olhares
o último toque
no entre-cílios.

Transverso I

Me angustio e vou errando
caminho
por pedras
desenhado
presságio de volta não há.

Perguntam-me de outras partes
do que há bonito pra ver.
Se olho, não digo palavra.
Vou errando
minha sina
encontro d'olhos denuncie:
bonito não se faz, bonito há,
bonito não há, bonito se faz.

Tuesday, December 02, 2008

conclusão

da vida eu quero a estética.
a beleza vivida e sentida.

Sunday, November 16, 2008

Sunday, November 09, 2008

Gentileza

Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro
Ficou coberta de tinta

Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
Só ficou no muro
Tristeza e tinta fresca

Nós que passamos apressados
Pelas ruas da cidade
Merecemos ler as letras
E as palavras de Gentileza

Por isso eu pergunto
A você no mundo
Se é mais inteligente
O livro ou a sabedoria

O mundo é uma escola
A vida é o circo
Amor palavra que liberta
Já dizia o Profeta

Pois outro dia eu vi o clipe dessa música, Gentileza, da Marisa Monte, e resolvi procurar a história dela. Eu sempre gostei muito dessa música, sempre a achei de uma singeleza tal que me encantava. E depois que eu descobri a história dela e do que ela de fato trata, eu a escuto umas cinco vezes por dia, no mínimo. A história é muito bonita, e vou contá-la aqui.


Acontece que existia um moço, o José Datrino. Trabalhador, lutava pelo pão de cada dia no sustento dos filhos, juntou dinheiro e acumulou sua própria frota de caminhões, montou um pequeno negócio, começava a sentir-se dono de si, trabalhando, trabalhando, trabalhando no comércio. Essas histórias que comovem pela universalidade acreditada e respaldam o sonho americano de cidadania.


Datrino morava no Rio de Janeiro, e, em 1961, aconteceu um incêndio em um circo da cidade, e muitas crianças morreram queimadas, o circo foi totalmente destruído. A história causou comoção nacional. E José Datrino teve uma anunciação.


Alguns dias depois do trágico incidente do circo, José, sob a recomendação de “vozes astrais”, resolveu abandonar o mundo material, e dedicar-se somente ao mundo espiritual. Acampou no terreno do circo queimado por algum tempo, fez dele sua morada: plantou flores, instalou-se no local, e consolou os familiares da vítima da tragédia.


Perambulou por diversas cidades do país. Ensinou as pessoas a pedirem “por gentileza” e a dizer “agradecido”, porque gratidão não de obriga, gratidão é estado de graça. E gentileza não é favor, é ação genuína de bondade. Falava do amor e da paz, e de como Jesus, Pai e o Espírito Santo é que deviam ter o apreço dos cidadãos, e não o capitalismo, reino e corpo do diabo. Embora não tivesse relação com o Partido Comunista, foi levado à delegacia, durante a ditadura, para explicar a sigla PC no seu estandarte. Ele explicou: Pai Criador.


Além da delegacia e da prisão, o Profeta Gentileza, como ficou conhecido entre os cariocas, também passou por internações em hospitais. Conta-se que ouviu de um médico, no hospício, a pergunta gloriosa: se ele estava lá para que os médicos o ajudassem ou para ajudar os médicos.


Gentileza escreveu suas mensagens em grandes painéis em viadutos no Rio de Janeiro, com sua grafia inconfundível e seus termos que giravam em torno da máxima “Gentileza Gera Gentileza”.


Depois de sua morte, contudo, os painéis não tinham mais cuidados, e foram sendo degradados pelo tempo, até que amanhecem, um dia, cobertos de tinta cinza. Apagados. Foi então que se começou, encabeçado por um professor da Universidade Federal Fluminense, um movimento pela restauração da grande obra de Gentileza e seu tombamento como patrimônio cultural municipal. Foi nessa época, também, que Marisa Monte gravou a música em questão.


Os painéis foram restaurados e tombados como patrimônio cultural. O professor da UFF escreveu um livro sobre o Profeta, “Brasil: tempo de Gentileza”, e, como quando a gente dá a mão já levam o braço todo, inclusive a Coca-Cola criou uma campanha utilizando a grafia peculiar de Gentileza e sua célebre “Gentileza Gera Gentileza”.


Essa é a história, e quem se interessar pode ler mais aqui.


Agora, histórias como essa são um alívio pra mim, são sim. Não sei se vocês leram, mas há alguns posts atrás eu falei da angústia em sentir um mundo estritamente calculista, em que o pensamento e a ação são pautados por lógicas do cálculo custo-benefício, em que tudo é instrumento e nada mais é fim porque é. Nada mais é porque é. Tudo parecia ser para algo ou para alguma outra coisa. E descobrir Gentileza, assim como descobrir Estamira, por exemplo, me é um alívio. Porque me mostra outras possibilidades. Um universo, uma outra forma de explicar as ações, e outros porquês, ou, melhor, a ausência de porquês previamente estabelecidos e planejados para uma determinada ação. A ausência de estratégia, e a missão bem-sucedida – porque não há a possibilidade de falhar. O que há é história e desejo. Consciente de si.

Thursday, October 30, 2008

maria

sei que, assim falando, pensas que esse desespero é moda.
eu quero é que esse canto torto, feito faca corte a carne de vocês.

Monday, October 20, 2008

Da estrangeirice

Hoje em dia, só se tagarela. O silêncio na biblioteca tagarela tão que desconcentra, eu fico desconcertada com a desarmonia que atrapalha. As luzes dos postes apostam brilhos mil no carro que vai quebrar, ou no motorista que vai primeiro buzinar. Eu batuco as mãos na direção, no ritmo da música, mas é só pra dar vazão ou disfarçar a ansiedade. Chego em casa e o carro tagarela, a bagunça do quarto clama por atenção e insiste em vigiar meus passos. O arroz e a abobrinha disputam a apreciação; o dispêndio de tempo de quem engole tudo às pressas. A ânsia em chegar em casa para ligar a televisão e obter um pouco de silêncio, ainda que pago pra ver.

Wednesday, October 15, 2008

Pausa necessária ao fôlego da caminhada (4 e último)

Pois que o acúmulo progressivo dos tempos, do qual te dizia eu enquanto notava que você não me ouvia, o acúmulo progressivo de tempos também é a história. E não deve ser por acaso minha falta de recordação da história recém-contada por você. Sua tentativa de compartilhar comigo sua história, se fora compartilhar, é fracasso. Perdoe-me o lugar-comum extravasado, mas a partilha só existe quando a vontade é mútua. Como saber essa vontade mútua se sequer se sabe a vontade? Mas essa já é outra história. Dizia, eu, de sua história olvida, irreal e progressivamente adormecida em mim – pois que o desbotado também é processual. Sei te dizer uma coisa: as pessoas não se escutam. Uma vez perguntei a um professor sisudo o porquê dos problemas de comunicação, se tudo o que vejo são sons e barulhos e risos. Ele explicou-me condenando o riso. Disse que estava no riso o problema da comunicação, da falta de seriedade na cumplicidade. Não vi espaço para questionar a autoridade da figura, mas ele que me perdoe: se existe algo que denota cumplicidade, esse algo é o riso. O sorriso, a gargalhada, o riso é sempre sincero. O riso amarelo a gente vê num tapa, o riso sincero não deixa dúvida. E tem gente que ri do riso dos outros, quer forma de comunicação mais sublime?

Olha, me desculpe se te chateio com toda essa minha especulação, mas são as coisas que eu acho, mesmo. E acho também que a gente não tem que ter pudor pra falar, nestes tempos, não. Entre suspensões e apologias, fico eu cá com minhas aporias que, se não me satisfazem, me representam e me acalantam. Não faço odes a racionalidades, tampouco sei de curas milagrosas ou cientificamente comprovadas. Muito me agrada sua companhia, mas este é um país livre e o senhor tem todo o direito de deixar este balcão (não te exijo sequer sinceridade), as luzes acesas ou não. Felicidades eternas não desejo, mas meus cumprimentos e minhas saudações. E, se me permite uma recomendação: gengibre, música, açúcar e estrelas, para a voz.

Wednesday, October 01, 2008

Interlúdio


Postsecret

Pausa necessária ao fôlego da caminhada (3)

Confesso, também, que nada mais me recordo de sua história. Peço desculpas; seria hipocrisia culpar o tempo, pois acabo de tomar conhecimento dela e ela já me escapa pelas mãos. Cada palavra que me assombra é responsável pelo adormecimento das anteriores. Mas também não posso exigir recordações de algo que me forma apenas no imaginário. Hoje, toda história ouvida é também história olvida, pois não passa da imaginação, talvez aliada à vontade da preservação, e, melhor ainda, da elaboração do passado – legitimada pelos acenos positivos de cabeça do interlocutor (consciente ou não do que lhe está sendo despejado e esperado).

E, apesar de você me contar de sua voz rouca, o que me marca e persiste na memória são seus olhos e o movimento de suas sobrancelhas – o que não deve ser surpresa, depois de explicitado meu elogio à verdade e minha busca. As sobrancelhas, expressão feliz da intocável procissão de harmonia, celebrada por você. A cumplicidade instaurada pela troca sobrancelhas-percepção abriu um novo mundo de liberdades, para mim. Mundo este agora governado, então, por um novo tempo: o tempo de liberdade. Tempo infinito, não-finito; se um outro tempo for um dia definido por outro elemento que não a liberdade, ele será somente um outro tempo definido por outro elemento que não a liberdade. A mecânica entre a outra definição e a ausência de liberdade é, assim, uma falácia: o tempo outro não exclui o tempo de liberdade. A liberdade não se extravia, mas os tempos tampouco se sobrepõem; acumulam-se – mas não em camadas, nem contínua nem linear (tampouco caoticamente). O acúmulo é progressivo e harmonioso. Os elementos se sobressaem não porque nos salta aos olhos, mas porque nos salta a. A nada. Sinto, não sei dizer por que os elementos se sobressaem. Talvez seja a minha neurose, ou a necessidade inculcada da sistematização para que a comunicação seja possível entre nós. Mas dizia eu do acúmulo progressivo, ele é síntese mágica e profunda, sem preocupações com funcionalidades perseguições ou erros. É promessa, assunção e percepção de desejo e de conceito. É a não separação entre esferas do mundo, é pensar a totalidade em conjunto com a especificidade do que se pensa, de tudo que se pensa, e, mais do que isso, é não se limitar ao pensamento. É entender e consentir a corporeidade: mente, espírito e corpo em ensaio perene de compreensão.

E, quando insisto na plenitude inatingível, sei do seu caminhar lento, da sua voz rouca e deus cabelos quebradiços. Sei de sua voz rouca antes do início da conversa, e, convém lembrar, não te exigi nenhuma explicação. Como não te exijo justificativa, clamo apenas por gratidão. Gratidão sem sujeito e sem objeto, gratidão como movimento, dádiva, dom e, principalmente, gratidão como reconhecimento. A gratidão, ensino-te, pode ser tão bonita quanto a valsa, quando no embalo não se espera um salão nobre ou baile de máscaras para encerrar grandiosidades medíocres ou fracassos. A gratidão pode ser a valsa bonita que soa com o caminhar sobre o gramado em dia de sol não tão quente, o ritmo cardíaco e a respiração em compassos que até o padre duvida. Gratidão explode, ainda que tímida; gratidão derrama lágrimas e sorrisos e beijos e abraços e sal e doçura. Gratidão não é quando nem como, é deixar ser e estar. Consciente e confortavelmente, sentir-tocar. Gratidão não se ensaia – embora os ensaios também contenham dose cavalar de improviso, emoção e doação genuína – e o genuíno é a construção coletiva e particular, os pesares, os processos, a história.

Sunday, September 21, 2008

Pausa necessária ao fôlego da caminhada (2)

O sexo não explicitado. Sinceramente, pouco importa a parcela de intenção sexual presente em seus olhares a mim direcionados: jamais foram explicitados. Poder-se-ia dizer que é mero cavalheirismo, ou, pior, quão galanteador ou cafajeste você é. Mas não, nada disso: calado. Ainda que sensual, tenho certeza que nosso contato jamais se desenrolaria no entrelaçar de corpos embriagados ou apaixonados. Ainda que revestido de tensão sexual, interrompido por vermelhos e calor a percorrerem os corpos e o ambiente e conduzido por silêncios meus outrora impensáveis – que a olhos inábeis seriam o entendimento sutil da expressão do desejo –, ausente o toque. Ausente qualquer possibilidade de toque. O sonho de suas mãos sobre as minhas, o desejo do toque, o ímpeto de acompanhar, com meus dedos em movimentos sutis, seus desenhos, a impressão permanente de seus traços em minhas retinas: nada. Não é ausência de vontade, jamais fora ausência de desejo meu. É ausência, intransitivo, incompleto e incompletável. Ausência.

Confesso, sua história a tal ponto me encantou que desconfiei, confesso, desconfiei de sua veracidade. Envergonho-me mais pela importância por mim atribuída à desconfiança do que pela desconfiança em si. Nua e crua (o desejo de sentir seus ossos em minha pele), a desconfiança da veracidade é o papel principal de uma peça de teatro mainstream, eu diria. Ou de qualquer teatro político que se reivindique brechtiano, dizem. A vergonha daí depreendida, por mim, é mais do que o desejo da unicidade; é expressão escamoteada de busca infinita pela incoerência. O anseio do reconhecimento pela totalidade e da totalidade; e se toda totalidade engendra contradições, por que, em geral, busca-se o conhecimento de cada ladrilho da casa, em detrimento da apreensão consciente do processo de construção como um todo?

Sunday, August 31, 2008

Pausa necessária ao fôlego da caminhada (1)

Sabia
Que você ia trazer seus instrumentos
E invadir minha cabeça
Onde um dia tocava uma orquestra
Pra companhia dançar
(Chico Buarque, Lola)

Depois da longa perturbação, vem a oscilação até a volta à sensação original, vivida em contexto diferente. Por mais que seja essa uma das funções primordiais de um balcão de bar, confesso que são raras as noites em que estranhos me dirigem a palavra sem aguardo de resposta. A ausência de expectativa, tanto no seu tom de voz como na sua sinceridade em cantar sua vida, por acaso, a mim. A ausência de expectativa e o saber ser escolhida a esmo, sem nenhuma particular afetação. Isso performou, em mim, o encantamento.

(Nota: é o primeiro parágrafo de um conto-resposta que estou escrevendo)

Friday, August 22, 2008

É a terra que querias ver dividida

Vocês sabiam que há um outro PAC (não é o da suposta aceleração de desenvolvimento) que é Programa de Atuação em Cortiços e que é financiado pelo BID, banco internacional?

Registro

Ontem eu fui a campo, dar um "pontapé inicial" pra minha pesquisa.
Foi bem legal. :) :)

"A gente resiste pra não morrer mais rápido", fala de uma senhora, professora de História na rede pública estadual, ao se apresentar.

Thursday, August 14, 2008

Notas a partir de "Fool for love", de Robert Altman

(Filme baseado na peça de teatro homônima de Sam Shepard).

1. O silêncio é leve e pesado.
2. Ao omitir a última fala da peça de teatro, a intenção do diretor me parece ser manter a história aberta. A última cena é a May caminhando pela estrada, imagem ampliando até a imensidão e ela se dissolvendo no cenário. A indefinição como sentimento e sensação sem dúvida objetivados ali são cerne do filme.
3. Tenho a impressão de que os finais 'abertos' nos filmes começam a ser recorrentes. Ou, pelo menos, a ganhar espaço. Isso se deve a i) a problemática da narrativa destruída (em termos superficialmente benjaminianos) ser assumida pelos diretores, que não sabem como resolver e, enfim, 'o que não tem solução...'?
4. Ou a ii) maior desejo de proximidade entre espectador e ator/diretor/filme, na tentativa de não subestimar o público?
5. (Estou sendo demasiado otimista? Para contrabalancear, então:)
6. iii) A impressão de recorrência do recurso 'final aberto' nos filmes não passa de ilusão; o que há é, de fato, a mais cruel ação (se mal-intencionada ou não, não sei dizer) de desindividuação do espectador a partir de histórias supostamente universais. O que há é o nivelamento a partir de critérios grosseiramente pré-estabelecidos para o sucesso de público.
7. Não é bem assim. Recomendo 'Do outro lado', de Fatih Akin.

(pausa para o jantar)

Monday, July 28, 2008

Simplicidade harmoniosa (ou harmônica, faz sentir)

As letras de bossa nova são, em sua maioria e num primeiro momento, singelas. Algumas transbordam lugares-comuns, outras apontam para abordagens ingênuas de temas tão presentes nas canções, como o amor. O sorriso e a flor, por excelência, dominam o que se convencionou chamar de 'primeira fase' do movimento bossa nova: jovens de classe média que compunham bonitezas à beira-mar.

Tanta simplicidade, um quase-bucolismo, um neoarcadismo? Mas a bossa nova, aos poucos, deixa de ser só um 'ritmo' - as aspas são para amenizar o sentido do termo; 'ritmo' é o que menos poderia caracterizar a bossa nova. Mais correto seria, talvez, falar de estilo. Porque a bossa nova torna-se adjetivo e estilo de vida: há televisores, lava-louças, automóveis bossa nova. Tom Jobim (ou Vinicius de Moraes; posso estar confundindo), num dos vídeos que assisti na exposição '50 anos de bossa', diz que ouve num anúncio, na rádio, que há um 'pente bossa nova', e arremata, em inglês (o programa não era gravado no Brasil): "Isso não faz bem para a música..."
Por trás da simplicidade da bossa está o que é, então, um dos motivos - talvez o principal - do sucesso nacional do termoestilo bossa nova e que leva os Estados Unidos e a Europa à loucura: a harmonia das canções.

O que dá à bossa nova caráter extraordinário é a harmonia. A execução sutilmente sensível e livre da obra musical, que não deixa, porém, de ceder a improvisos, a vertigens, e culmina na subversão da métrica rítmica, na voz fluida e nos desembaraços extrapola as noções musicais de até então e proporciona o frisson e a novidade que a bossa nova engendra, representa e propõe. Subversão essa, convém lembrar, possível fundamentalmente por conta do profundo conhecimento de teoria musical e de composição por parte de alguns dos compositores-ícones do movimento.

E é justamente essa criação única - a partir de influências de música clássica, samba e jazz - na forma de tocar que desmente a aparente simplicidade da bossa nova. É lamentável que as músicas de protesto tenham sido, nos anos 60 e 70, consideradas antagônicas à bossa nova: a mudança é desejo e operação de ambas. Talvez as limitações (perdoem-me o possível escracho) tanto da bossa nova quanto da tropicália, por exemplo, encontrem seus limites na mal-sucedida fusão entre forma e conteúdo.

O fato de a excepcionalidade da bossa estar profudamente enraizada na harmonia (na forma de executar a música) demonstra a unicidade de cada apresentação e execução. Ainda que o próprio Tom Jobim toque e cante Garota de Ipanema milhares de vezes, cada toque e cada canto será único, por sutilezas nos movimentos do próprio intérprete e reinvenções constantes: experimentações no ato, inevitavelmente bem-sucedidas.

Finalmente, nem só de amor vive a bossa nova: ela é também a rosa de hiroshima e a marcha da quarta-feira de cinzas. Carcará, opinião. E - por que não? - o amor, o sorriso e a flor. A sentimentalidade e a política caminham juntas - coerentemente com um movimento tão potencial e verdadeiramente subversivo (ainda que a subversão não se dê em termos ortodoxos - o paradoxo aqui é proposital). Sem subordinações de tempos e períodos: cada um com sua grandeza, grandiosidade e profunda sensibilidade.

P.S.: Texto em suspensão e em processo de reavaliação, depois dos comentários do Lucas!

Wednesday, July 23, 2008

De memória e constituição

O passado, amassado e forçosamente esquecido ou desapercebido, desdobro e transborda.
Quanto da gente é construído e constituído a partir das negações, das não-escolhas, da passividade?
Fico pensando o que podia ser o presente se coexistissem, em outras dimensões, diferentes passados e futuros
(no mundo como um todo e no meu pequeno tempoespaço de vida). Quando digo 'diferentes', quero dizer diferentes do que se conhece, percebe e interpreta hoje.
Aliás, o que é a vida senão leituras e releituras de momentos sob ópticas próprias e singulares?
E quando essas ópticas sofrem (ou causam) refração? É o caos, são desejos proibidos, incongruentes, incoerentes? Vontades contraditórias ou complementares (ou suplementares, para não pressupor a plenitude)?
Talvez seja confusão, indecisão, ou excesso de sentimentalidade. Desejo, consideração. Saudade. Vontade de palavras, olhares e toques daqueles hoje tão distantes.
Fica aqui o suspiro.

(Meu coração vagabundo quer guardar o mundo em mim)

Tuesday, July 08, 2008

Vinte anos

Nos últimos dias, penso nos meus recém-chegados vinte anos de vida e busco sínteses e entendimentos de processos. Busco palavras e conceitos que possam expressar o que é uma vida no contínuo desta existência.
Vinte anos é pouco e é muito. É pouco porque nada sei da vida, é muito porque tanto sinto apreender.

E me vêm as descobertas, as permanências e as transições, em processos e explosões. Implosões rendidas e assumidas. O contato com as temporalidades, tanto aprendizado!
O amor mais puro e genuíno, desde sempre, no porto seguro que é meu lar. A preocupação entendida, de todos os lados. A felicidade compartilhada, multiplicada nas conquistas. O apoio desejado, implícito e por vezes explicitado: segurança. O cuidado fraterno (de irmão, mesmo) e a cumplicidade.
O caminhar para a conquista de autonomia e auto-sustentação (e afirmação), desde o deixar de andar de mãos dadas com os pais em lugares públicos, até a escolha do que cursar na faculdade: aprender a decidir por mim mesma os meus desejos.
No processo de adquirir segurança de si, voltar a andar de mãos dadas com os pais em lugares públicos. Andar lado a lado com os pais, em lugares públicos e nos rumos particularmente escolhidos dentre possibilidades limitadas.
A experimentação de relações, o descobrimento das diferenças e o maravilhamento com a diversidade: a amizade; a descoberta do amor também tão genuíno, sem laços de sangue ou de família.
A percepção do desejo, a coragem da sinceridade.
A oscilação entre o cuidado de si e o zelar pelos outros.
Performances, ressignificações constantes: é a dinâmica processual tão bonita e tão cheia de si, de cor, de oscilação e equilíbrio.
É corda-bamba com sombrinha: braços abertos.
Felicidade, tristeza, angústia, sofrimento, impotência, descrença; as dores, é claro.
Contorno dos caminhos, salto de pedras: beira do mar. (Pular ondas, sorrir, confiar, acreditar.)
A busca incessante de preenchimento. O entendimento do preenchimento por si. O alívio no não-preenchimento, na plenitude impossível e na percepção de vontades, sempre originais, em transformação. O cuidado de si, agora leve. O zelar pelos outros, sem peso.
A história, as histórias. O horizontalizar relações, a solidão: vislumbrar novos horizontes.
A leveza e o peso do amor. Enfrentamentos, encantamentos e digressões. Paixão, terra, mar.

O amor como arremate, su(b)stância e fundamento: é esse o elemento espiralante do balanceio de vinte anos.
(Com um pouco de café, doces, lágrimas e abraços.)
Minha vida é matéria de sonhos - e os sonhos direcionam meu olhar crítico à realidade.
(A crítica da transformação com manutenção; a síntese como processo e como transitoriedade.
Num tempo que é meu. Concomitante a intersecções e encontros os mais bonitos. Em tempos.)

Sunday, June 08, 2008

'You better take off your homburg'

Eu gosto muito quando, no meio de uma conversa com alguém, consigo obter um esclarecimento pra mim mesma de algo referente à minha vida, minha história de vida, meu momento presente, minha personalidade ou alguma coisa que paira ou se transporta entre essas categorias e o que elas sugerem.

Ontem vivi uma experiência desse tipo. Eu não costumo fazer deste blog um diário explícito, expressamente. Mas acho que hoje o post vai caminhar pra isso. Até porque, se forma e conteúdo não se dissociam e o como dizer importa tanto quanto o o quê dizer, um post um pouco mais intimista e ativo na construção de laço expresso entre o escritor e o leitor vem a calhar.

Pois bem, quando acreditamos ou sentimos que estamos entrando numa fase de crise (ressalva aos que se dizem sempre em crise: me refiro a uma crise específica), é de engrandecer perceber como essa fase se liga com seu passado, sua formação, seu ser.

Como a gente faz quando se percebe preso, e quando não nota mais nenhuma possibilidade de ação ao seu redor? Nenhuma possibilidade de ação que expresse - por corpo, alma, letras, canções, conversas! - uma forma de pensamento e de organização de mundo alternativa. Explico: depois de entrar com contato com uma relativa gama de organizações, instituições, movimentos sociais, partidos políticos, grupos de discussão, coletivos de ação direta etc., que têm (ou dizem ter) em comum uma visão de mundo alternativa à dominante (ou seja, alternativa à instrumentalizada, à que se regula pela análise calculista do custo-benefício), vejo que as práticas de tais grupos, quando analisadas a fundo, levadas ao extremo ou simplesmente entendidas e internalizadas, não propõem outra forma de pensamento que não essa do cálculo custo-benefício, que acabei de explicitar. Ora, se forma e conteúdo são indissociáveis, o não-abandono do pensamento puramente estratégico não te coloca em nível diferente do seu oposto só porque 'seu fim é mais nobre que o do Outro'. Ou, para não me restringir a juízos de valor (do tipo 'mais nobre que'), posso formular da seguinte maneira: ainda que o conteúdo seja radicalmente diferente, se a forma através da qual este conteúdo é aplicado - ou, ainda, a própria noção de necessidade de aplicabilidade do conteúdo - esvaziam a proposta 'alternativa', 'revolucionária', ou o nome que vocês quiserem dar a isso.

Digressões à parte, o imobilismo ou a inação me angustiam. Angustiam porque - e isso foi o que descobri ontem, numa performance fantástica - durante minha adolescência, minhas maiores angústias diziam respeito à impotência. Os problemas que me vinham chegavam prontos, e eu não percebia nem vivia seus surgimentos, suas formações. O que me restava era o aguardo do curso da vida para resolvê-los ou sedimentá-los, em dimensões processuais muito lentas - o que faz sofrer muito a qualquer um disposto a questionar origens, causas e conseqüências.
Deixando um pouco de lado a dimensão psicológica e a 'sessão terapia', a questão da qual trato hoje, incessantemente, é se é possível à política e à vida transcender a dimensão meramente estratégica.

Penso 'política' como relações de poder. Imbuídas, sempre, de referenciais simbólicos, de significações. É possível um mundo onde as relações de poder se horizontalizem? Em que cada ser humano possa desenvolver suas potencialidades e realizar seus desejos à sua maneira? É claro que é possível política sem opressão. Mas a limitação da dimensão estratégica ainda me parece longe de ser superada.

Não prego, de modo algum, o abandono do pensamento estratégico. Tampouco o abandono da técnica, das reproduções, daquilo que alguns chamam de massificação e a minha pitada de otimismo quer defender como democratização. Quero é ver a criatura se rebelar contra o criador.

As coisas que escrevi aqui estão longe de estarem esgotadas. Pelo contrário! São indicações de algumas temáticas que estarão e estão por detrás do meu discurso nos últimos e próximos tempos.

E, pra finalizar, música bonita:

Your multilingual business friend
has packed her bags and fled
leaving only ash-filled ashtrays
and the lipsticked unmade bed.

The mirror on reflection
has climbed back upon the wall
for the floor she found descended
and the ceiling was too tall,

Your trouser cuffs are dirty
and your shoes are laced up wrong.
You'd better take off your homburg
'cause your overcoat is too long.

The town clock in the market square
stands waiting for the hour
when its hands they both turn backwards
and on meeting will devour
both themselves and also any fool
who dares to tell the time.

And the sun and moon will shatter
And the signposts cease to sign.

Procol Harum - Homburg

Wednesday, May 28, 2008

contestation

Sejamos realistas, exijamos o impossível.

Em francês, contestation. O ápice da negação descarada e convicta e, talvez por isso mesmo (e isso já é inserção minha), rumo à proposição da construção do novo pela negação do atual.
É bonito, mas não é só bonito, ver Marx e Valery e Breton e Debord e Godard juntos, esculpidos e ordenados em paralelepípedos e em harmonioso compasso de idéias! - note-se: não é retórica vazia.

Por hora é só um prelúdio de alguma melhor elaboração formalconteudística e uma nota de recomendação do livro de Carlos Fuentes, Em 68 - Paris, Praga e México. Publicado aqui pela Rocco, neste ano.

Sunday, May 18, 2008

Música do mundo

Vou-me embora desta terra
segunda-feira que vem

"Os músicos que recorrem ao poder mágico da palavra cantada para atrair as forças dos espíritos", segundo os hausa, um povo do norte da nigéria: Mawaca.
A banda reinterpreta músicas do mundo todo, e mostra pra gente. É bem legal.
Eu recomendo.

Friday, May 16, 2008

Vibe dos baianos e do livre

Abre a porta e a janela e vem ver o sol nascer

Por curiosidade, na Last.fm fui ver as tags mais populares para 'Novos Baianos - Preta, Pretinha'. Eis o resultado:

mpb, tropicalia, brazilian, brasil, samba, psychedelic, 70s, brazil, musica brasileira, experimental, novos baianos, musica popular brasileira, brazilian music, tropicália, choro, Bossa Nova, brasileira, World Music, suinge, Psychedelic Rock, rock, delicia, braziliantogettoknow, unamerican, cantor, vocal masculino, brazilian alternative, musica regional, just a bit of fun, novosbahianos, never gonna see live, charlie brown jr, flexstudio, mpbeousambadoidao, Boas Festas, Novos Bainos, capao, brasil samba rock, Paulinho Boca de Cantor, trem baum, vibe brasilidade, recomendo, rudiexplore, baianos, hippongagem, porreiro, baby consuelo, ronxi, alternative, Rock and Roll, Favorite, 60s, world, spanish, Recommended, sophisticated, kick-ass, Favoritos, Bossanova, Brasilian, South American, Bra, Brazilian Pop, tropical, brasileiro, 60, lesser known yet streamable artists, Bahia, far too good, lil brasil, lil best, cantora, anomia, melhor banda, latin

Eu acho o máximo esse lance de tag e brianstorm internético, sabe aquelas nuvenzinhas que ficam, em alguns sites, com várias palavras de vários tamanhos? Lembro da minha perplexidade quando vi pela primeira vez.

E já que o assunto é internet, outra coisa que tem me instigado muito são os softwares livres. Quero divulgar (embora este blog esteja longe de ser uma boa fonte de divulgação, rs) isso aqui, o Saravá.

Hm, vou escrever um texto sobre a vibe do livre. Amor livre, Curso Livre, conhecimento livre, podução livre...
Acho que tô me tornando uma entusiasta da internet. Vou ver se entro no rolê das tags.

A verdade do universo e a prestação que vai vencer

No fim das contas, como diz uma pessoa querida, é só uma tentativa de unir teoria e prática.
Ou, então, olhar ora pro universal, ora pro particular. E a busca da síntese. Ou do equilíbrio.

Ou da explosão.

Thursday, April 24, 2008

Abril despedaçado

Quando enfim esteve certo de seus sentimentos, chorou.
Não assim repentinamente; ele continuou caminhando, o ritmo da desaceleração pulsando. Andava lento e sentia o coração pulsar na cabeça. Parou. Procurou um espaço, na sarjeta, eu não estivese extremamente sujo aos olhos e sentou. Rabiscou, com um galho, umas letrinhas que logo viraram círculos, no asfalto estranhamente meio molhado - tinha chovido?
Largou o galho, apoiou os cotovelos nos joelhos dobrados. A cabeça firme, olhos na linha do horizonte, as lágrimas.
Depois disso, percebeu que os corpos todos choram. E ninguém (quase) nunca percebe.

Monday, April 07, 2008

Sobre o esboço, tanta arte

Normativamente, é importante dizer, um esboço é caracterizado pela sua incompletude. Por não estar terminado, concluído e acabado. Incrível, talvez contraditória mas – creio – justamente pelo traço da fragilidade, um esboço contém sempre algo de mais instigante, de deliciosa obtusiodade [o ato de ser obtuso], de encantamento. O esboço é a arte feita e por fazer, é a dialética de preenchimento e vazio, o encontro transcendente entre escritor e leitor, formadores e conformadores, talvez a partir – mas tendo a crer que apesar – da experiência.

Porque vejo a experiência como destruidora da criatividade e da esperança. Humildemente tomo esta idéia emprestada de um pensador maior, visto que não brotou em mim, mas fui por ela contagiada através de uma de muitas leituras que me chegam, oportunamente, através de pessoas queridas, momentos imprevisíveis, arroubos de sensitivismo ou qualquer outra coincidência que alguns insistem que a conjunção dos astros pode justificar ou explicar – eu não duvido.

Digo, não duvido, mas tampouco creio. Os índios, li em um antropólogo arrogante, inventam suas verdades a todo o tempo, quer por brincadeira, quer por ingenuidade, quer por serem elas mesmas as verdades, quer por serem as mentiras que devem – e são, portanto – contadas. Pois bem, também não creio em bruxas, mas que elas existem, existem. Suspendamos a discussão de cunho estrita e explicitamente espiritual e religiosa e continuemos.

Após introduzir o esboço como encantamento, permita-me a exaltação de qualquer tipo de deslumbre. Encantar-me, hoje, é meta primeira de minha vida. Rechaçar os padrões de cultura, os domínios do capital e a superficialidade das relações. Embriagar-me das virtudes que eu, e somente eu, vejo em cada mulher e em cada homem. Deliciar-me com os carinhos e as sutilezas – envoltas, explícitas, enlameadas, dissimuladas e dissolutas – de cada qual que me cruza o caminho e me pede – ou peço eu – um pouco de tempo.

Porque o tempo, ensinaram-me, é único de cada relação. São os tempos, por assim dizer, os estruturantes das peculiaridades de cada relação humana. Relação indefinida, não só por toque, respiro, suspiro, brisa, olhar ou verborragia; relação indefinida. Escrevo apenas na negatividade de uma passível limitação, para estender o caráter humano às mais maravilhosas unicidades possíveis. Embora não viva só no tempo do possível. O tempo do desejo, o tempo da tolerância, da autonomia e do cuidado, das mediações entre ser, mostrar e parecer; são todos tempos do não-possível. Por serem tempo são também realidade.

É o ato do concreto, a respiração ouvida que faz meus anseios crescerem exponencialmente. Não quero a intolerância dos infelizes, quero as experimentações sem precedentes, as experiências sem opressões. Quero a magia de um mundo sonhado, imaginado e vivido e sentido e apalpado. Dentro da realidade que construímos, esse mundo também tem seus tempos. E suas realidades.

É o mundo que dói, sim, ainda dói, e a dor pode, sim, continuar insuportável. Não é um mundo mais aceitável; nem ele por nós nem nós por ele. As concretudes das dores tornam a vivência ainda mais insuportável, tanto aos olhos de quem as vive como aos de quem as sente. E, embora a crueza da realidade soe tão dura a ponto de furar os tímpanos, não se desiste nem se desespera.

Desespero é para os que não tiveram, ainda, coragem de encarar o mundo com os pés fincados no chão e o olhar no horizonte, atravessando perceptivelmente as portas, janelas, os muros e construções no caminho. Desistência não enfraquece, nem tira a força dos persistentes; desistência é estado de espírito; não estado de ser. Desistência nos acomete diariamente, mas é justamente por sua falta de consistência que não deve nos consumir (e não consome). A esperança não-aniquilada não cede à desistência, ainda que seja este o seu desejo.

Porque a magia persiste no mundo, talvez nas consciências individuais, talvez em sentidos, subjetivos e objetivos, encontrados nos mais diversos lugares, espaços e tempos. Talvez a magia persista porque o estado da magia é o estado da busca. E o estado da busca é o estado da esperança não-aniquilada. E por mais que o raciocínio esteja circular, não me desespero. Isso é só o esboço de tanto que está por vir.

Sunday, March 30, 2008

Círculos, espirais, amargor e doçura

Um desconhecido parou bem em frente a mim, na madrugada, me estendendo a mão. Eu não soube o que fazer. O que são contatos físicos, hoje, na brasilidade? Entre quem beijos, abraços e apertos de mão são passíveis de aceitação, inofensivos e quiçá desejados?
E pontapés, aforismos, ofensas, injúrias, calúnias, fobias?
Notar os apesares de: a gente gira na mesma órbita e não se comunica. Se não gira, sequer se encontra. Os desencontros anulam o amargor, mas não trazem a doçura do compartilhar.
É uma questão de flutuar, oscilar e saber apaziguar. Quase esperar.

Sunday, March 16, 2008

Sincronicidade

... é o tempo mudar assim, bruscamente.
Calor de 38 graus às seis da tarde, não mais.
Agora é domingo e chuva. E muito café.
(Espirros e pé gelado; cadê o cobertor?)

Friday, March 14, 2008

Sexta-feira chuvosa.

Os meses pingam
encontram-se
aglomeram constroem cultivam criam! sentidos.

É o café, o chá,
as mãos frias,
as mãos quentes,
os espantos (mundos atordoam
e cegam e praticam a desmesura do que clamam
[alteradamente
de maneira que não entendo).

O abraço dissipa o cinza.
Quero cores definidas.
O beijo me lembra inteira,

presente excesso cais e o barco!,
no mais é tudo e somos
vida estrada carinho alento
saliva. Flor, contentamento.

Sunday, March 02, 2008

Breve ensaio (e sobre a gratidão)

Ensaio não é aglomerado de palavras; é treinar, experimentar e cada vez descobrir um novo ou uma nova. Não o novo ou a nova, porque nova e novo são indefinidos por definição. Este ensaio é breve por ser quase apenas os primeiros minutos de uma valsa, a Valsa dos cisnes ou o Danúbio, embora levemente contemporaneizados. Não-livres de clichês, contudo, pois embora as atualizações (forçadas e genuínas) aconteçam de maneira cada vez mais forte, há que se manter a beleza das valsas, o oscilar lânguido e perfeito e o semi-cerrar de olhos tão bem encaixado(s).
A gratidão pode ser tão bonita quanto a valsa, quando nela (digo, na valsa) não se espera um salão nobre ou baile de máscaras para encerrar grandiosidades medíocres ou fracassos. A gratidão pode ser a valsa bonita que soa com o caminhar sobre o gramado em dia de sol não tão quente, o ritmo cardíaco e a respiração em compassos que até o padre duvida.
Gratidão não se ensaia - embora os ensaios também contenham dose cavalar de improviso, emoção e doação genuína (e quando me refiro ao genuíno, não nego a construção, a história, os pesares e pensares). Gratidão explode, ainda que tímida; gratidão derrama lágrimas e sorrisos e beijos e abraços e sal e doçura. Gratidão não é quando nem como, gratidão é e é deixar ser e estar. Consciente e confortavelmente, sentir-tocar.

Saturday, February 23, 2008

Merda, Caetano Veloso

Nem a loucura do amor,
da maconha, do pó,
do tabaco e do álcool
vale a loucura do ator
quando abre-se em flor
sob as luzes no palco.

Bastidores, camarins
coxias e cortinas
são outras tantas pupilas,
pálpebras e retinas.

Nem uma doce oração,
nem sermão, nem comício
à direita ou à esquerda
fala mais ao coração
do que a voz de um colega
que sussurra "merda!"

Noite de estréia, tensão,
medo, deslumbramento,
feitiço e magia:
tudo é uma grande explosão
mas parece que não
quando é o segundo dia...

Já se disse, não foi uma vez,
nem três, nem quatro:
Não há gente como a gente,
gente de teatro!
Gente que sabe fazer
a beleza vencer
prá além de toda perda.
Gente que pôde inverter
para sempre o sentido
da palavra "merda"!

Merda! Merda prá você!
Desejo merda!
Merda prá você também
Diga 'merda' e tudo bem!
Merda toda noite
e sempre! a merda!
Amém!

Wednesday, February 13, 2008

Carnavália

A luz apaga porque já raiou o dia
E a fantasia vai voltar pro barracão
Outra ilusão, desaparece quarta-feira
Queira ou não queira terminou o carnaval.
Mas não faz mal, não é o fim da batucada
E a madrugada vem trazer meu novo amor
Bate o tambor, chora a cuíca e o pandeiro
Come o couro no terreiro porque o choro começou.

A gente ri
A gente chora
E joga fora o que passou
A gente ri
A gente chora
E comemora o novo amor.

Brancos, negros e mulatos. Pobres, ricos, classe média. É clichê dizer que o Carnaval é a festa nacional, que une todo mundo. Mas é assim, e então parece que a vida é um pouco clichê, também. Constatei isso aqui em Recife.

Diferentemente dos times de futebol (o Sport de maior torcida, de classe média; o elitista Náutico e o popular - indo na raiz do termo - Santa Cruz), fanatismo de recifenses como, talvez (novamente clichê constatado) da maioria dos brasileiros, os blocos que desfilam e fazem a festa e a história no Recife não são segmentados por estrato ou classe social.

Na festa de abertura, o prefeito é "vaiado só pelos ricos. Eu aplaudo mesmo", me grita no ouvido a Marina, moradora de periferia e amiga de minha grande amiga Aline (em cuja casa de família estou me hospedando e sendo super bem acolhida). Quando pergunto se a prefeitura é boa, ela é assertiva: "Os dois mandatos de João Paulo fizeram foi melhorar muito Recife". E de qual partido ele é? Do PT.

Depois de palanque, o palco acolhe todos os santos e muito batuque, e me vejo no meio de uma ciranda colorida que "só faz aumentar" e preenuncia a alegria, os sorrisos, a expansão e o frevo da cabeça ao pé que percorrem e marcam todo o Carnaval daqui. Elza Soares e Marisa Monte também abençoam os foliões, com direito inclusive a homenagear Chico Science.

O maracatu, ao lado do frevo, é um dos ritmos dominantes. Tambores, cores, chapéus preenchem Olinda, e quando olho para cima, os bonecos gigantes assumem contornos nítidos no céu azul, azul. Lembro-me das histórias, das tradições, e me sinto preenchida e acolhida, fazendo parte de tudo aquilo e tudo isso. No lugar certo, na hora certa - e na embriaguez do frevo. Abençoado por todos os santos, todos os olhos e todas as cores.

Sunday, January 20, 2008

Veementindo

As horas não passam em dias chuvosos. Sequer passam os pensamentos. Ameaçam ir embora, rodopiam e não se desfazem. Voltam e permanecem, displicentes, sem nenhum pudor.
O sol já era fraco, ah, era tão bom de ouvir você cantar aqui, ela dissera.
A chuva cessando quanta vida urbana junta que canseira de barulho café telefone internet literatura noir.
Senti que alguns olhos me observavam, o sol sumia, nem uma cor das sete bonitas no céu.
Olhava quase com ternura.

Saturday, January 05, 2008

Mas o golpe estava dado.

"... disse apenas: "Ai! meu Deus!", soltou um suspiro e perdeu os sentidos. Estava morta! Foi um espanto!
Quando tudo terminou, no cemitério, Carlos voltou para casa. Embaixo não achou ninguém; subiu ao primeiro andar, foi ao quarto e viu ainda um vestido pendurado ao lado da cama; então, apoiando-se na secretária, permaneceu por muito tempo perdido num devaneio dolosoro. Ela, afinal, amara-o."

Gustave Flaubert, Madame Bovary.