Sunday, November 16, 2008

Sunday, November 09, 2008

Gentileza

Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro
Ficou coberta de tinta

Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
Só ficou no muro
Tristeza e tinta fresca

Nós que passamos apressados
Pelas ruas da cidade
Merecemos ler as letras
E as palavras de Gentileza

Por isso eu pergunto
A você no mundo
Se é mais inteligente
O livro ou a sabedoria

O mundo é uma escola
A vida é o circo
Amor palavra que liberta
Já dizia o Profeta

Pois outro dia eu vi o clipe dessa música, Gentileza, da Marisa Monte, e resolvi procurar a história dela. Eu sempre gostei muito dessa música, sempre a achei de uma singeleza tal que me encantava. E depois que eu descobri a história dela e do que ela de fato trata, eu a escuto umas cinco vezes por dia, no mínimo. A história é muito bonita, e vou contá-la aqui.


Acontece que existia um moço, o José Datrino. Trabalhador, lutava pelo pão de cada dia no sustento dos filhos, juntou dinheiro e acumulou sua própria frota de caminhões, montou um pequeno negócio, começava a sentir-se dono de si, trabalhando, trabalhando, trabalhando no comércio. Essas histórias que comovem pela universalidade acreditada e respaldam o sonho americano de cidadania.


Datrino morava no Rio de Janeiro, e, em 1961, aconteceu um incêndio em um circo da cidade, e muitas crianças morreram queimadas, o circo foi totalmente destruído. A história causou comoção nacional. E José Datrino teve uma anunciação.


Alguns dias depois do trágico incidente do circo, José, sob a recomendação de “vozes astrais”, resolveu abandonar o mundo material, e dedicar-se somente ao mundo espiritual. Acampou no terreno do circo queimado por algum tempo, fez dele sua morada: plantou flores, instalou-se no local, e consolou os familiares da vítima da tragédia.


Perambulou por diversas cidades do país. Ensinou as pessoas a pedirem “por gentileza” e a dizer “agradecido”, porque gratidão não de obriga, gratidão é estado de graça. E gentileza não é favor, é ação genuína de bondade. Falava do amor e da paz, e de como Jesus, Pai e o Espírito Santo é que deviam ter o apreço dos cidadãos, e não o capitalismo, reino e corpo do diabo. Embora não tivesse relação com o Partido Comunista, foi levado à delegacia, durante a ditadura, para explicar a sigla PC no seu estandarte. Ele explicou: Pai Criador.


Além da delegacia e da prisão, o Profeta Gentileza, como ficou conhecido entre os cariocas, também passou por internações em hospitais. Conta-se que ouviu de um médico, no hospício, a pergunta gloriosa: se ele estava lá para que os médicos o ajudassem ou para ajudar os médicos.


Gentileza escreveu suas mensagens em grandes painéis em viadutos no Rio de Janeiro, com sua grafia inconfundível e seus termos que giravam em torno da máxima “Gentileza Gera Gentileza”.


Depois de sua morte, contudo, os painéis não tinham mais cuidados, e foram sendo degradados pelo tempo, até que amanhecem, um dia, cobertos de tinta cinza. Apagados. Foi então que se começou, encabeçado por um professor da Universidade Federal Fluminense, um movimento pela restauração da grande obra de Gentileza e seu tombamento como patrimônio cultural municipal. Foi nessa época, também, que Marisa Monte gravou a música em questão.


Os painéis foram restaurados e tombados como patrimônio cultural. O professor da UFF escreveu um livro sobre o Profeta, “Brasil: tempo de Gentileza”, e, como quando a gente dá a mão já levam o braço todo, inclusive a Coca-Cola criou uma campanha utilizando a grafia peculiar de Gentileza e sua célebre “Gentileza Gera Gentileza”.


Essa é a história, e quem se interessar pode ler mais aqui.


Agora, histórias como essa são um alívio pra mim, são sim. Não sei se vocês leram, mas há alguns posts atrás eu falei da angústia em sentir um mundo estritamente calculista, em que o pensamento e a ação são pautados por lógicas do cálculo custo-benefício, em que tudo é instrumento e nada mais é fim porque é. Nada mais é porque é. Tudo parecia ser para algo ou para alguma outra coisa. E descobrir Gentileza, assim como descobrir Estamira, por exemplo, me é um alívio. Porque me mostra outras possibilidades. Um universo, uma outra forma de explicar as ações, e outros porquês, ou, melhor, a ausência de porquês previamente estabelecidos e planejados para uma determinada ação. A ausência de estratégia, e a missão bem-sucedida – porque não há a possibilidade de falhar. O que há é história e desejo. Consciente de si.