Thursday, May 28, 2009

sem chapéu-coco

quando o samba começava, você era a mais brilhante,
e se a gente se cansava, você só seguia adiante.
hoje a gente anda distante do calor do seu gingado,
você só dá chá dançante onde eu não sou convidado.

é minha a melodia que você roça com a ponta dos cabelos em movimento de leveza tão rara que enternece. é minha a cadência que você segue, os passos staccatos num lento-duro e a boca seca entreaberta. são caminhos incertos desenhados no inebriante porão, cheio de brisa de dama-da-noite. é desandar ao berros de juras de amor, excretar tanto cheiro de mulher, e tossir espasmo no sereno.

reza braba

laia ladaia sabatana ave maria

Puxa as mangas da camisa, no crepúsculo a temperatura cai, o otimismo cede, o corpo inerceia, não balanceia nem cai, permanece na tortura, as costas puídas pelo café com ou sem açúcar, depende da companhia e dos minutos que restam. Massageia o entre-olhos, o locus do terceiro olho, dissera a estagiária que nem tinha mais idade praquilo, tem gente que não toma vergonha, os cabelos raleando e a cara lavada, nem um risquinho de lápis, será que queria botar banca de? O terceiro olho tinha o quê da relação sua com espiritualidade, não, não tô falando de religião, é espiritualidade, você, o cosmos, energia, rio, árvore, vela, macumba, vivo ou morto, o que fizer sentido pra você. Estralou as costas na lembrança dos esportes deixados de lado porque. Espiritualidade pode ser batata-frita às três da tarde? Botou até adoçante no café.

Tuesday, May 26, 2009

nem balzac

a caio fernando abreu, pode?

tá, então, vamos lá. é um tal de abrir janelas mas manter cortinas próximas, um ou outro vão de luz só que é permitido, tem que ter cuidado, as sutilezas. abafamento. os lascivos feixes de luz entram carregados de pó acumulado naqueles excessos de tecido. e então é um tal de hospital, de bolo na garganta e pernas bambas, e a obstinação carregada de responsabilidade e certeza, mas a mão trêmula denuncia qualquer outra coisa na curva para avistar a entrada do quarto, boa tarde, como vai, beijo na mão, abraço, carinho. e é um tal de sexo casual, ligações breves cheias de dedos, as sutilezas, as sutilezas. são músculos doloridos no início da semana, uma ou outra coceira no corpo ardido que pede arrego, a densidade dos cheiros no lençol, nos livros por terminar, qualquer coisa que impregna, quarta, quinta-feira. e então correm boatos, são desejos, é o trabalho de manhã, reunião, café e alguns gostos que se misturam, azedo, amargo?, laterais da língua. e é comida de mãe, é varar a madrugada, quisera ao som de um blues ou bolero, é varar a madrugada com as pálpebras queimando. não é choro, nem tesão. é a tensão entre crítica e resignação. todas as noites, até adormecer; todas as manhãs, esforço hercúleo pra levantar. e levanta, que o mundo não tarda, e cutuca.

Monday, May 18, 2009

As lanças do crepúsculo

Lição de esperança, igualmente, o modo como os Achuar vivenciam a sua identidade coletiva sem se embaraçarem com uma consciência nacional. Ao contrário do movimento histórico e ideológico de emancipação dos povos que, a partir do final do século XVIII na Europa, quis basear as reivindicações de autonomia política apenas no compartilhamento de uma mesma tradição cultural ou lingüística, os Jivaro não concebem sua etnicidade como um catálogo de traços distintivos que dariam substância e eternidade a um destino compartilhado. Sua vida comunitária não se justifica pela língua, pela religião ou pelo passado, nem sequer pela ligação mística com um território encarregado de encarnar todos os valores instituindo sua singularidade. Ela se alimenta de um mesmo modo de vivenciar o vínculo social e a relação com os povos vizinhos, às vezes sangrento, decerto, em sua expressão cotidiana, não pelo banimento do outro na desumanidade, mas por uma consciência aguda de que ele, quer seja amigo ou inimigo, é necessário para a perpetuação do eu. Os Achuar me ofereciam assim a demonstração a contrario de que os nacionalismos étnicos, em toda a eventual barbárie de suas manifestações, são menos uma herança das sociedades pré-modernas do que um efeito de contaminação de antigos modos de organização comunitária pelas modernas doutrinas da hegemonia estatal. O que a história fez ela pode desfazer, prova de que o tribalismo das nações contemporâneas não é uma fatalidade e que a nossa atual maneira de representar a diferença através da exclusão talvez possa algum dia dar lugar a uma sociabilidade mais fraterna. (Descola, As lanças do crepúsculo, 2006, pp. 459-460)