Saturday, October 27, 2012

haikai VI


calçada, cimento fresco.
com árvore, o vento
fossiliza a primavera

haikai V


dobra vinca prende fura
como já nascida
bailarina da costura

haikai IV


manhã de feriado
meu despertador
maritacas no telhado

haikai III

risos de crianças
no pátio do prédio:
prelúdio de domingo

haikai II

no escuro do brejo
sobra desencontro
entre coaxos e ecos

haikai I

para a saudade futura
restar doce no peito
a mansidão do tempo

Saturday, August 25, 2012

do luto, ainda


basta a convalescência
que o mar não ensina
tampouco o tempo, a bebida,
maltratar-se (corpo e alma),
a meditação, o sexo: nada
convalesce um coração estilhaçado.

só a fome.
só a fome pode ensinar a convalescer do irreparável.

Friday, August 24, 2012

comoção durante uma assembleia


fiquei tomado. a senhora parece muito a falecida da senhora minha mãe, deus a tenha, esses olhos, lá na bahia, nossa senhora, fiquei arrepiado. o que é que eu dizia? que nossa mentora é nossa cabeça. nós vamos com nossos pés pra onde nossa cabeça destina. eu sei o que é o sofrimento de cada um de vocês. e eu vou estar junto com cada um de vocês, se vocês estiverem junto comigo, junto com o movimento, lutando também pelo seu companheiro. eu me sinto bem quando posso fazer alguém feliz. obrigada pelo presente, matei, matei sim um pouquinho da saudade da minha mãe, quantos anos, meu deus, obrigado.

Thursday, August 23, 2012

uma história possível do jardim em frente ao bradesco


eu fui atropelado. fiz aquele jardim ali, vê como está bonito, as mudinhas, o desenho da terra todo alinhado, vê. dá gosto olhar, né não? aqui debaixo é tudo buraco. é tudo buraco debaixo dessa cidade, sabe, eu não bebia, cavei esses buracos todinho. mas você é bonita, hein? me lembra minha filha quando moça, ela me deu três netos, tudo homem, varão. nenhum deles sabe fazer jardim. sabe, pra fazer jardim tem que ter muito silêncio dentro de você. não é saber que planta que pega bem, é saber que planta o jardim ali quer, fazer todos os convites, sabe, honraria? jardim precisa de honraria. fui muito mais feliz fazendo jardim do que cavando buracos. claro que falar que fiz essa buracaiada aí impressiona, né, eu e meus companheiros, mas a gente nem anda nesses trem, não. eu gosto é do jardim. ninguém olha pro jardim, só querem saber do trem mais rápido e mais moderno, dizque tem trem que nem motorista tem. é que não bate sol, já basta eu não ver o sol nunca nunca nunca porque agora bato ponto de segunda a sexta, já basta acordar no escuro, sair de casa no escuro e voltar já tá escuro de novo, quando é folga eu faço jardim. não me meto nos buraco pra ir lá pra zona norte, nos churrasco dos companheiro, ah não. gente também precisa de sol. a honraria do meu jardim é eles receberem meu sol todos os dias. e me convidarem quando é folga, é. pois fui atropelado, menina, então, é por isso que tô pedindo pra você usar essa tesoura e podar aquele galho ali pra mim, faz favor.

Thursday, August 16, 2012

da brandura à espreita

todo concreto quando em calçada
deveria por lei receber
(quando fresco ainda, é importante)
folhas na caducagem

o carimbo alinhavado
seria a prova dos nove
da brandura, sempre à espreita,
revelada a olhos atentos.

quando o mundo convida


amei alguém que me deixou
não amei quem me deu o conselho mais valioso:
confie no movimento da vida.

é tudo aberto demais, ou quase.

Friday, August 10, 2012

arte é movimento


não me olhe com espanto.
se enegreço o desenho tão bonito,
é tudo feito com brandura:
cai a noite na cidade.

Tuesday, August 07, 2012

do gesto cheio

para t.
sua palma da mão sobre as vestes da minha coxa esquerda
tem o peso exato do quarto
movimento da nona sinfonia de dvorak:
faz-me sentir viva.

Sunday, August 05, 2012

[quando eu morrer]


quando eu morrer
jamais plantem flores na terra sobre mim

não me dêem lápide sepultura não encravem
minhas datas em pedra nenhuma
deixem-me
ao léu

meu epitáfio será dente-de-leão
como praga
espalhando-se na terra.

Tuesday, July 17, 2012

morte encapsula tudo

cemitério faz que rima
mas não rima com velório.
rima com impropério, despautério, deletério

e contrariando normas
e tudo que me dizem de sério

tento fazer velório rimar
com o som do meu coração
esfacelado, em desespero

que espero transpareça quando rio.

Monday, May 14, 2012

carinho no rosto


quero a tua mudez
teu riso leve e frouxo
e as plantas que insistes aguar todas as manhãs.
quero as manhãs mornas ao seu lado
com pouco ou nenhum som.

quero teus cadernos preferidos do jornal
tua escova de dentes no banheiro
e teus fios de cabelo no chão.

não te quero perto senão quando te quero
pouco mais que três vezes na semana
quando te quero plena, inteira e entregue
sob a luz da janela que escolheres.

notívaga

parte da noite
toda ternura recebida
parte em ti meu desejo
parte da noite volúpia
parte sono da noite em fuga
parte teu olhar sobre mim
parte da noite sagaz
teu corpo em tato
que jaz
todo outro sentido
parte da noite
deixa vestígios
parte da noite calor
e não durmo
não dormimos
sei que não dormes
parte da noite sufoca
teu corpo quando lembrança
parte da noite me arranca
suspiro, suspiros e parte
parte da noite é dureza
quando da noite fugaz
parte tudo quanto toco
na noite parte da noite
meu amor,
meu amor, parte
da noite, meu amor.

Tuesday, April 24, 2012

sobre linhas I


peço-te que imagine uma linha.
imagine o diâmetro exato de seu fio
e se existe ou não um buraco possível de agulha para se fazer travessia.

imagine sua cor, nuançada entre um tom de céu ou areia
ou talvez nenhum desses mas aproximadas cores de lembrança
ou precisas e irresolutas, inelutáveis cores de sonho
quando num continuum diálogo de vigília e só se sabe sonho porque
não sentes dor
o absurdo denuncia
o despertar deixa a dúvida e portanto: sonho

peço-te que então imagine de que é feita essa linha.
se do mais comum material encontrado na natureza
encapsulado e doravante produzido
em fábricas por homens comuns
em vilas por eco-propostas
e consumido como requinte;
se de um raro material;
quão denso;
se escapa, desfia, desfaz, solta pedaços bolinhas farpas pó no [manuseio;
se num emendo artesanal;
mais ou menos longo;
se sob intervenção infantil multicolorida e dura (pintada com guache) [e esgarçada (do contato com as unhas);
quão maleável.

não me diga nada dessa linha e não a tente reproduzir.
essa linha é o que te é e não me é possível compreendê-la ou imaginá-[la.

podemos, contudo, tomar aulas de arte
e aprender teorias contemporâneas e estudar produções de [assemblage
estudar construção de esgoto e sustentação de casa (é claro que a [linha pode vingar)
enforcar um inimigo
dançar melodias e bater palmas ritmadas
saltar do ônibus no ponto errado
suar a camisa ao passar por alfândegas
cozinhar massas acompanhadas de peixe fresco
colecionar rótulos de importados e pedras não-lapidadas
arriscar um lançamento de pedra e receber bombas que nos fazem [correr
tirar roupas do varal
tamborilar na espera

e fazer, no descanso, ponto-cruz.

Monday, April 23, 2012

à parte as objeções


meu tempo é o abafado das caixas de sapato
de bico-fino sob outras caixas tantas
que se logra abrir com cuidado
em tardes amenas,
antevésperas de grandes eventos.

meu tempo é o embaçado desigual da vidraça do banco de trás
quando as crianças fazem apostas mentais sobre a corrida das gotas de chuva
e desenham até onde a mão alcança
repetidas sempre vezes
e a gordura se encrusta.

meu tempo é o encurvado de uma persiana
da janela central de uma pequena casa
onde por apreço à claridade essa persiana não tem uso
e seus cantos suspensos sustentam
o bicho todo, envergado em simetria.

meu tempo podem ser coleções comuns
como vinis empoeirados,
promoções de salgadinho,
pontas de lápis, papéis.

desde que tão bem-guardadas,
lembresquecidas
como os entres, os desiguais, os desusos,
em que a sutileza impera e desarma mas
pungentes que são, não perdoam.

de uma noite de abril

ela ri como deve dançar (suponho): cheia de si.
a ela desfio teoremas de vida que arremata, tenaz:
“nega acertos de uma vida tão dual!”

liquefaz meus misterinhos e me esbofeteia a cara;
me ensina: tampouco é original acreditar no erro;
rebato com meu silêncio clamando por um carinho

desponta cumplicidade e extravasa e finjo
desperceber o esboço de nós;
é croqui, desenho atravancado.

Monday, April 16, 2012

'sampa'

só me aconselham a sair dessa cidade
eu finco o pé e finjo não te ter saudade
digo que o certo é vaguear enquanto posso
e a multidão me acalenta

e digo e volto pro calor do teu regaço
na pouca fé restante nessa parceria
no sono meu desejo errante se vicia
e a prontidão me atormenta

e te assemelhas em virtude injuriada
à retidão da fumaça que me alimenta
e é por isso que vagueio e só tropeço
na mansidão que alardeia enquanto arde

ps: essa é uma letra de música que fiz pra uma amiga musicar!

Tuesday, April 10, 2012

(sem título)

detesto acordar e ver seus cabelos brancos.
detesto porque me lembram:
tempo é resoluto e impiedoso
não fui ensinada
velórios
amores
auroras

detesto seus cabelos brancos
dizem
coração despedaçado não se cura
até o fim há novidade
(desespera-me)
nada permanece

e é por isso
que durmo tanto pelas manhãs.

seus cabelos dizem cabelos brancos
e ainda não sei dizer que te amo.

Friday, March 02, 2012

azulejo

azulejo é um céu longínquo,
é o pássaro que ri no gorjeio hábil.
pode ser apelido carinhoso de banzo
vermelho, preto,
negro, índio,

azulejo é rastro e cheio
da incertitude é mestre.

azulejo reina com mastro e véu
e é café num copo sujo.
é sempre sempre intimidade
e também por isso sufoca:
azulejo encrustra.

azulejo pode ser
carrinho de bebê ao sol,
meneio de namorada
e seu sabor quando lento.

azulejo é todo-somente sublime
corpo em profunda terra
ou não é.

Sunday, February 12, 2012

da fruição


durmo, acordo e
te beijo
nessa ordem:
em fogo e paina
a vida flui.

não sonho e não
se inundam meus olhos quando
te sinto os lábios nos meus:
em febre e letargia
a vida paira.
em café, sons, pudores.
acordo em sebo e não é teu corpo
não é teu corpo em meu tato e
sei numa virada brusca:
é
afogar e logo
a vida plana.

movimento-me
por me saber tua
numa desordem qualquer
logro-te um afago:
a vida flui.

Tuesday, February 07, 2012

da vida gentil: segundos de menino na rua

o menino de uniforme escolar pergunta por que o violinista toca na rua; o pequeno corpo do menino conduzido pela mãe com precisão, o pescoço insistindo na direção do estridente que inundava também os meus ouvidos. páram no cruzamento.
- para ganhar dinheiro, responde a mãe.
o menino aceita: é desfeito o absurdo do cenário. há motivo e razão e, dessa feita, harmonia. ele atenta ao semáforo de pedestres e prepara o corpo para o impulso. atravessará à minha frente quando da luz verde, segurando obstinado sua mochila de rodinhas.