Tuesday, April 24, 2012

sobre linhas I


peço-te que imagine uma linha.
imagine o diâmetro exato de seu fio
e se existe ou não um buraco possível de agulha para se fazer travessia.

imagine sua cor, nuançada entre um tom de céu ou areia
ou talvez nenhum desses mas aproximadas cores de lembrança
ou precisas e irresolutas, inelutáveis cores de sonho
quando num continuum diálogo de vigília e só se sabe sonho porque
não sentes dor
o absurdo denuncia
o despertar deixa a dúvida e portanto: sonho

peço-te que então imagine de que é feita essa linha.
se do mais comum material encontrado na natureza
encapsulado e doravante produzido
em fábricas por homens comuns
em vilas por eco-propostas
e consumido como requinte;
se de um raro material;
quão denso;
se escapa, desfia, desfaz, solta pedaços bolinhas farpas pó no [manuseio;
se num emendo artesanal;
mais ou menos longo;
se sob intervenção infantil multicolorida e dura (pintada com guache) [e esgarçada (do contato com as unhas);
quão maleável.

não me diga nada dessa linha e não a tente reproduzir.
essa linha é o que te é e não me é possível compreendê-la ou imaginá-[la.

podemos, contudo, tomar aulas de arte
e aprender teorias contemporâneas e estudar produções de [assemblage
estudar construção de esgoto e sustentação de casa (é claro que a [linha pode vingar)
enforcar um inimigo
dançar melodias e bater palmas ritmadas
saltar do ônibus no ponto errado
suar a camisa ao passar por alfândegas
cozinhar massas acompanhadas de peixe fresco
colecionar rótulos de importados e pedras não-lapidadas
arriscar um lançamento de pedra e receber bombas que nos fazem [correr
tirar roupas do varal
tamborilar na espera

e fazer, no descanso, ponto-cruz.

Monday, April 23, 2012

à parte as objeções


meu tempo é o abafado das caixas de sapato
de bico-fino sob outras caixas tantas
que se logra abrir com cuidado
em tardes amenas,
antevésperas de grandes eventos.

meu tempo é o embaçado desigual da vidraça do banco de trás
quando as crianças fazem apostas mentais sobre a corrida das gotas de chuva
e desenham até onde a mão alcança
repetidas sempre vezes
e a gordura se encrusta.

meu tempo é o encurvado de uma persiana
da janela central de uma pequena casa
onde por apreço à claridade essa persiana não tem uso
e seus cantos suspensos sustentam
o bicho todo, envergado em simetria.

meu tempo podem ser coleções comuns
como vinis empoeirados,
promoções de salgadinho,
pontas de lápis, papéis.

desde que tão bem-guardadas,
lembresquecidas
como os entres, os desiguais, os desusos,
em que a sutileza impera e desarma mas
pungentes que são, não perdoam.

de uma noite de abril

ela ri como deve dançar (suponho): cheia de si.
a ela desfio teoremas de vida que arremata, tenaz:
“nega acertos de uma vida tão dual!”

liquefaz meus misterinhos e me esbofeteia a cara;
me ensina: tampouco é original acreditar no erro;
rebato com meu silêncio clamando por um carinho

desponta cumplicidade e extravasa e finjo
desperceber o esboço de nós;
é croqui, desenho atravancado.

Monday, April 16, 2012

'sampa'

só me aconselham a sair dessa cidade
eu finco o pé e finjo não te ter saudade
digo que o certo é vaguear enquanto posso
e a multidão me acalenta

e digo e volto pro calor do teu regaço
na pouca fé restante nessa parceria
no sono meu desejo errante se vicia
e a prontidão me atormenta

e te assemelhas em virtude injuriada
à retidão da fumaça que me alimenta
e é por isso que vagueio e só tropeço
na mansidão que alardeia enquanto arde

ps: essa é uma letra de música que fiz pra uma amiga musicar!

Tuesday, April 10, 2012

(sem título)

detesto acordar e ver seus cabelos brancos.
detesto porque me lembram:
tempo é resoluto e impiedoso
não fui ensinada
velórios
amores
auroras

detesto seus cabelos brancos
dizem
coração despedaçado não se cura
até o fim há novidade
(desespera-me)
nada permanece

e é por isso
que durmo tanto pelas manhãs.

seus cabelos dizem cabelos brancos
e ainda não sei dizer que te amo.