Wednesday, July 29, 2009

dispersões despertas

Batidas na porta da frente - é o tempo
Eu bebo um pouquinho pra ter argumento
Mas fico sem jeito, calada,
ele ri.
Ele zomba do quanto eu chorei
Porque sabe passar
e eu não sei.
Um dia azul de verão, sinto o vento
Há folhas no meu coração - é o tempo.
Nana Caymmi

hoje, voltava da minha aula de francês, dirigindo. tinha chovido, mas estava com sol, algumas nuvens bem densas e escuras de um lado do céu, e o outro lado já muito azul. no meio do caminho, desconhecido (dei carona pra uma amiga e acabei voltando por um caminho que nunca tinha feito) fui surpreendida por um arco-íris, que me trouxe qualquer coisa de algum lugar racionalmente intangível, e me fez brotar um sorriso.

percebi que o arco-íris é uno, holístico, e que seu centro está em toda a parte. mas sempre que ele aparece, toca qualquer coisa de muito profunda, sincera, que tem inclusive algo de pueril em sua tanta beleza. ele parece nos brindar tão-somente com aparições raras, sutis e fragmentadas, à espreita da distração que o aperceba. e viria daí seu charme apaixonante.

acontece que sempre que ele aparece e nos aflora essas sensações boas, deve ser porque ele se comunica com qualquer coisa da nossa história, da nossa memória, que faz sentido no passado e no presente. nos brinda, talvez, com a fragilidade absoluta e perfeita da vida. e a sensação que nos ilumina, num dia, vai desbotando ao longo dos outros dias, até que nos esquecemos da visita do arco-íris - para sermos lembrados pelo próprio, em mais uma aparicação magistral num futuro mais ou menos distante. e essa nova aparição faz aflorar novamente todas as sensações boas, a maioria delas inexprimíveis em palavras. alguém poderia dizer que é como um ciclo, mas não. não é ciclo, porque não tem início, meio, fim, e início de novo. como já disse, o arco-íris é uno, embora se nos mostre apenas em fragmentos.

tem sido presente, na minha vida, nas últimas semanas, pensamentos sobre a vida, a morte, o além. essa aparição desse arco-íris me fez perceber como tanta coisa da vida não tem início nem fim, como a vida em si não é início, nem a morte é fim - como já tinham tentado me ensinar os monges do templo budista em 2007, mas só agora comecei a entender o que isso significa. vida e morte se entrelaçam, e isso faz da vida absolutamente bela e una. a morte deixa, sim, muitas coisas mais difíceis de se compreender e até de se viver. mas encontro algum sentido quando penso que ela nada mais faz do que escancarar o caráter fragmentado e raro das aparições dos arco-íris. e lembro que a aparição rara, fragmentada e sutil, à espreita de qualquer falha na nossa vigilância que acometa de comoção nossos sentidos todos, nada mais é do que a percepção da presença infinda, infinita e perene (já que não há final).

presença do quê? não sei dizer ao certo. talvez seja mais uma dessas coisas que a gente só sente, e que muitas pessoas dão nomes diferentes. amor, pessoas, valores, ensinamentos, lembrança, memória, fé. o que sei é que isso se torna constitutivo da gente, e, como qualquer nova condição, é dolorosa, um pouco assustadora, e contém em si grande dose de beleza. o que nos é sempre ensinado é que, diante de condições um pouco assustadoras, a gente deve abrir o coração e compartilhar com aqueles cuja comunicação se faz mais facilmente (o pai, a mãe, o cachorro, as estrelas, o diário, o terapeuta, quer estejam nessa terra em carne e osso, quer não?). são eles que, na ação de compartilhar, desanuviam o susto e intensificam a beleza. sempre.

Monday, July 13, 2009

'moscou', de eduardo coutinho (ou: orgulho de ser brasileira)

diretor e produtor sobem ao palco para apresentar seu filme, antes da exibição no festival de cinema de paulínia. enquanto o produtor faz os agradecimentos de praxe, o diretor ronda o palco, observa as marcações no chão, olha para o chão, olha para cima, põe as mãos nos bolsos, puxa as calças que caem, o claro paletó desalinhado contrastando com a calça escura (ou seria o contrário?).

dedica o filme a joão moreira salles, aquele que o salvou do convento - destinação correta, segundo o próprio coutinho, caso o documentário fracassasse antes mesmo de tomar corpo. moreira salles assiste a algumas cenas e profere a sentença: 'sim, há filme'. coutinho vê que sua carreira não será anunciada em obituário, e segue o conselho do amigo: faz um documentário longo, em fragmentos, e sem se preocupar em fazer entender a história da peça teatral a ser montada.

pois o argumento de coutinho é gravar o processo pelo qual passa o grupo galpão de teatro, quando aceitam o desafio de montar 'as tres meninas', de tchecov, em três semanas (ou um mês?). a sugestão de moreira salles não foi senão coroar aquela que, imagino, já era a intenção de coutinho, em parte justamente por se tratar de um documentário: não fazer uma livre adaptação da peça de tchekov, mas usá-la como linha condutora dos processos internos, externos, subjetivos e coletivos pelo qual passam o grupo de teatro e seus indivíduos no início de uma construção e desconstrução, como o diretor da peça de teatro diz no início do filme, de uma peça teatral.

além disso, basta lembrar de outro célebre documentário do diretor: jogo de cena. nele, coutinho consegue magistralmente mesclar memórias , fazer aflorá-las, compartilhá-las, e construir, a partir de fragmentos com um quê de realidade (i.e., as memórias alheias), as memórias de tantos personagens. em 'moscou', não se tem certeza de quem são as memórias escancaradas na tela - ainda que, por vezes, em black out. mas a origem das memórias não tem importância. o que importa é a generosidade do compartilhá-las, sem saber quão efêmeras ou quão encrustradas nos corpos alheios elas ficarão.

eduardo coutinho dá um drible na centralidade da noção de verdade, e com isso desafia nosso apego às nossas próprias noções - estanques, corretas e só nossas. ele propõe compartilhar as verdades, inventá-las, relembrar cheiros e recolori-los depois. pega emprestado uma das mais belas coisas do teatro e a põe no centro de seu belíssimo filme: a inventividade.

Friday, July 10, 2009

sinal fechado

eu acho tão bonito quando o carro em que estou pára no cruzamento, rola aquela suspensão entre o seu sinal que ficou vermelho e o sinal dos outros que está prestes a abrir, e então o sinal abre, e eu gosto mais quando é faixa dupla, e tem um carro ao lado de uma moto, e os outros carros tratam a moto cm o respeito de carro - isto é, a deixam ocupar o mesmo espaço que um carro ocuparia -, e o sinal fica verde e o carro e a moto aceleram e saem andando juntinhos, o carro faz a curva fechada e a moto, a aberta. eu até acredito em harmonia, e em arte cotidiana, daí.

Wednesday, July 01, 2009

inspirada

a pétala da borda exterior a cor ainda viva o corpo exuberante sutil indício de meneio rumo ao desprendimento leve que a faria
, por fim,
flanar.