Saturday, December 26, 2009

Flamingos

Subia os degraus do sobrado em silêncio, movimentos precisos na exata medida entre o soltar demais o corpo a cada passo e o tomar muito impulso a cada inspiração. Exalava equilíbrio, mas não durante as festividades. Não que precisasse extravasar, não comprava a balela freudiana – não por amargor ou insegurança, mas por outro tipo de incompatibilidade, que especialmente nesse fim de ano aflorou: beleza. Necessidade e desejo de beleza. Não via a beleza nas medições, nas solícitas contenções e dispendiosas contendas, não; a via nos extravasares. Drama barato a olhos insensíveis; profundo amálgama eu-Outro aos mais cuidadosos. Os desavisados que não suspeitassem da destreza em não calcular sentimentos até ofereciam mimos e regalos, que de bom grado aceitava, ruborizando. Mas o que solapara, nesse Natal o que solapou em água e flor toda encenação foi a percepção do permitir-se encantar.

Friday, December 18, 2009

coração febril, abraço e amargura

acontece que não; não estava acordado que daquele encontro meio lascivo, primeiros toques sem ponderar limites, quentura dos corpos solapando interstícios, sem meias-inteiras-palavras, quem diria que desse arroubo embriagado ficariam olhares tão doces, apaixonadamente cúmplices? e brotaria – não se sabe de onde – algum pudor, timidez até, ansiedade. tempo de arrepio ao roçar de lábios, chumaços de entrega em carinhos incontestes. acontece que dançar conforme a música também é se permitir ser conduzida, e conduzir sem as mãos. e brotou., quer dizer que brota amor em meio a medos, traumas, e receios?, em meio a perdas, saudade, muita dor e lágrima? acontece que sim, brota, sim, acontece.

liberdade é quando eu rio na vontade do assobio
faço arte com pandeiro, matemática e loucura.
serenatas do Brasil, eu serei três serenatas:
uma é o coração febril, a outra é o coração de lata,
a terceira é quando eu crio na canção um desafio
moraes moreira

Sunday, November 29, 2009

militância, política e moral(idade)

na sexta-feira (dia 27/11/09), fui ler a folha de são paulo, depois de ter dado a última aula de literatura do ano no cursinho popular do qual faço parte.
me deparei com uma página inteira destinada a um artigo de césar benjamin supostamente sobre um filme sobre lula, que deve ser lançado em breve (tinha ficado sabendo da existência do documentário naquele mesmo dia, também lendo o jornal). não sou do tipo que desconsidera a história de vida dos militantes, e tive pra mim o cesinha como um puta militante estudantil no final dos anos 1960 e durante os anos de chumbo da ditadura brasileira. sabia que ele tinha saído do PT e depois do PSOL, mas não sabia mais por onde andava, se continuava militando. gostei de ver seu nome (me traz alguma familiaridade, uma sensação de quentura, tenho certeza de que é porque quando li '1968: o ano que não terminou', de zuenir ventura, no auge de meus anseios revolucionários mais brutos em mente, alma e coração, o cesinha (ou o que o zuenir dizia dele) fazia meus olhos brilharem), e li o artigo numa sentada.

e confesso que fiquei atordoada. ler sobre prisões, tortura, sofrimento humano e situações-limite - ele relembra, dentre outras coisas o tempo que ficou preso em solitárias -, sempre me atormenta (foi quase um martírio ler 'brasil: nunca mais').

pra mim, é inegável que o artigo é de uma sensibilidade que comove, sem ser banal ou clichê. mas não direito por que me intriga perceber que o cerne da polêmica por ele levantada é se é verdade ou não que lula tentara abusar de um menino quando esteve preso. se for verdade, guardadas as devidas proporções, temos algo como o 'caso polanski brasileiro'. se não for, cabe pensar também duas coisas: a) ficou encrustrado na vida do então adolescente cesinha a história de deboche, a piada (ainda que de mal-gosto) do então pré-candidato petista, e, verdade ou não, a história atormentou o mais jovem, e tornou-se parte dele (não vou tratar de como discursos que remetem a traumas - além, é claro, dos própriso traumas - nos transformam, moldam, compõem); b) cesinha, que saiu do partido dos trabalhadores, foi para o partido socialismo e liberdade e posteriormente também com este rompeu, e taticamente escreveu esse texto como mais um elemento de uma campanha anti-lula. bem, é claro que essas duas hipóteses que levantei podem se embrenhar, e matizar as motivações que levam alguém a escrever um texto como esse. de qualquer modo, não estou aqui tentando investigar seu espírito e encontrar suas motivações mais profundas para a produção do artigo.

mas não dá pra não pensar em narrativas, em como narrativas fazem história (o que lula contou ou deixou de contar; o que cesinha ouviu do que foi dito ou não-dito) e são história (o que ele escreveu no artigo; a repercussão do artigo). não dá pra não pensar nos perigos e perversidades de elaborar o passado, de olhar para ele em retrospecto (e olhamos para ele deoutra maneira que não em retrospecto?). e na combinação entre as urgências de elaborar o passado em função do presente, articulado (também me parece que não tem como ser de outro modo) com vivências afloradas (quer também tidas em retrospecto - a lembrança de césar benjamin de estar preso; a lembrança da conversa com lula anos atrás; quer presente ainda pouco elaborado - a saída de cesinha do PT, e, posteriormente, do PSOL; quer prospectos - o final do mandato de lula, a possibilidade da continuidade de sua política após as eleições).

aí também não dá pra não pensar na tensão entre público e privado - e até onde vai o limite de exposição de intimidade e a politização da vida privada. se é verdade que o presidente da república tentou abusar de um menino na prisão, por que isso não veio à tona antes? estar na prisão também se configura num estado de exceção, tanto no que diz respeito às regras próprias de se estar lá, como à sociabilidade específica entre os presos. o que acontece por lá, morre lá? é passível de entrar no debate público e político, anos depois? e se não foi verdade, mas manipulação da história, ou, ainda, qualquer espécie de 'licença literária'? nesse sentido, o caso também se assemelha (embora sob espectros distintos) à tentativa de transformar em escândalo o envolvimento de dilma roussef no seqüestro político do embaixador americano, charles elbrick, também nos tempos de ditadura no brasil.

ah, os tempos de ditadura do brasil. o tempo em si já era um estado de exceção. e muito da discussão sobre o que o artigo de césar benjamin tomou um viés moral. como falar de moral e moralidades num tempo em que as pessoas eram torturadas, silenciadas e assassinadas por discordar da política nacional?

por fim, queria só deixar claro que não acho que seja irresponsabilidade política césar benjamin ter escrito o que escreveu. tampouco ingenuidade (os ex-petistas anti-lula sabem que é sutil ficar ou não perversamente mancomunados com os direitistas, não é possível que não saibam!). e eu também não tenho culhões pra acusar o benjamin de direitista nem de neoliberal - por tudo o que disse ali em cima, que, sinteticamente, tem a ver com a história do cara. e aos que argumentarem 'veja a história de vida e política de lula, e hoje ele é neoliberal', tenho minhas ressalvas. a coisa não é tão preto-no-branco assim. é claro que a política nacional tem alinhamento com a política neoliberal, mas daí a dizer que 'lula é neoliberal', chapado e desistoricizado assim, me incomoda, e não resolve o problema. antes de quaisquer acusações, gente, pelamordedeus: eu não sou lulista. a real é que eu queria entender a geração dos anos 70, dos anos 80, dos anos 90... e, bom, no fim das contas, o que fica é a angústia da e na esquerda. e a angústia de perceber que o problema de ser real ou não [a tentativa de abuso de lula pra cima do menino na prisão] vira quase secundário. ô se assusta, tudo isso.

Monday, November 23, 2009

amarelada, flana, ainda

a tríade silêncio-fala-pensamento prega peças, desafia, surpreende e me encanta.
numa dança das mais sutis, o tom do mar se apresenta como amigo do peito; a delicadeza das palavras desponta sem pedir licença pelas serenas frestras de expectativa; há permissão, desejo, calmaria e notadamente meu corpo. o sol enlameia como o vácuo entre o chinelo bem pisado e a terra molhada; a noite cai amena, desapercebida que estou com seus cabelos. alguma santa chuva recém-nos-fita e envolve. cedemos, e há sorriso.

Wednesday, November 18, 2009

cinco meses

And the days are not full enough
And the nights are not full enough
And life slips by like a field mouse
not shaking the grass.
Ezra Pound

luto.

(e a saudade dói latejada.)

Tuesday, November 17, 2009

vernal

brindo cada copo de cerveja, água ou café. brindo e olho nos olhos, mas nem desanimo se não há encontro.
levanto os ombros quando tímida, ensaio um olhar de esgueio, sorriso de canto da boca e a mão entre os cabelos e o pescoço, algo provocante enquanto noto e digo ou não digo? da beleza do céu de manhã cedo, bruma leve e carinho na pele. me enrolo em termos antigos, busco outros músculos e vernáculos.
já é noite quando cedo ao fantástico da pele e a outros dançares. são ritmos e tons que, sonoros, táteis, visíveis, me fazem sentir cheia de vida. de memória, de história, de porvires. reconheço as dores e o alívio que elas me deram a um dos meus medos maiores: esquecer. hoje, sei que nem tempo nem amor nem dor nem saudade nem falta nem além faz(-me) esquecer. as reminiscências floreiam todo o tempo, e o encanto não é menor. assusta menos, saber que existe tanto encrustrado n'alma e no coração e que isso não conforma nem molda: compõe da maneira mais original e bonita. entalha. paciência de ourives, afinco de agricultor e certeza de mãe-de-santo. por aí.

Thursday, October 29, 2009

não quero tinta

no youtube, se você clica em 'mais informação', a informação aparece, e o lugar em que você clicou vira 'menos informação', e aí você clica, e a informação desaparece, sem deixar rastro nem impactar.

eu quero um botão desses.

Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Nem nessas coisas do oriente
Romances astrais
A minha alucinação
É suportar o dia-a-dia
E meu delírio
É a experiência
Com coisas reais.
Belchior, Alucinação

Wednesday, October 28, 2009

(sem título)

estou aqueles cachos sentados observando a festa.

os olhos da escorpiana desafiam em ode a Baco desapercebida se oferece à música encantada sons e corpo-tambor e acordes e notas sustentadas no sorriso.

sedução alucina.

me esqueço das outras mulheres que amei, desejo meu é permanente discrição – não ouso interromper essa profusa comunhão.

duas taças, pouco mais distantes, brindam. nem são de cristal, mas o encontro ecoa.

Tuesday, October 27, 2009

de idade e ternura

meu pai tem uma mania, anunciada e assumida, de encher de penduricalhos a casa. trazer de casa viagem ou passeio (e ele pede, e nós sempre trazemos) enfeites, ímas de geladeira, qualquer lembrança pré-fabricada pra turista ou colhida na rua sob olhos desatentos de viajante andarilhesco. às vezes vem até algo travestido de funcionalidade (trouxemos telhas e panelas de barro do espírito santo, e o peixe fica mesmo uma delícia). já me irritei e já tirei sarro dessa mania, mas hoje vejo que me faz tanto sentido! ter a casa impregnada de história, despretensioso e acolhedor assim.

Monday, October 19, 2009

desengano

tudo bem que seu beijo é seco
fica.
eu hoje prefiro chuva à solidão

Sunday, October 04, 2009

domingo

vida e morte se enlaçando
enlameando-nos no escracho
do escancaro escapulido
à meia-luz à queima roupa

um cesto de vime e na quina
um cordão dependurado
jaz desbotados dizeres

movimento e ventania
benção flores luzidias

Saturday, October 03, 2009

cenariando

Desde o princípio que fui independente, de uma maneira falsa. Não tinha necessidade de ninguém porque queria ser livre, livre para fazer e para dar só de acordo com os meus caprichos. Mal esperavam ou exigiam alguma coisa de mim, recusava e daí não arrancava. Foi essa a forma que a minha independência assumiu. Por outras palavras, fui corrupto, fui corrupto desde o princípio. Dir-se-ia que a minha mãe me dera um veneno como leite, um veneno que nunca me abandonou o organismo, apesar de ter sido desmamado cedo. Parece que até mesmo quando ela me desmamou me mostrei completamente indiferente. A maioria das crianças revoltam-se, ou fingem que se revoltam, mas eu estive-me nas tintas. Ainda usava cueiros e já era filósofo. Era contra a vida por princípio. Que princípio? O princípio da inutilidade. À minha volta toda a gente lutava e se debatia. Pessoalmente, nunca fiz sequer um esforço.
Henry Miller, Trópico de capricórnio

Queremos saber,
O que vão fazer
Com as novas invenções
Queremos notícia mais séria
Sobre a descoberta da antimatéria
e suas implicações
Na emancipação do homem
Das grandes populações
Homens pobres das cidades
Das estepes dos sertões
Gilberto Gil, Queremos saber

Era cansaço, puro cansaço, e não havia meios de combatê-lo. Não havia férias, loteria, banho de mar, búzios ou ajuda de feitiçaria. Olhava ao redor e a poeira nos livros despertava culpa; as roupas na gaveta urravam por repaginação; as moedas acumulavam-se e ocupavam espaços outrora de anotações e rascunhos, por excelência. Antigripais, brincos, canetas abertas, desenhos infantis e fotografias com sorrisos. Cartões postais delicados, um santinho de algum Bodhisattva apoiado na luminária que só acendia para dissimular dos outros moradores da casa que ainda estava acordada às quatro da manhã (não ousava acender a luz do teto). Muitos papéis espalhados, com notas que ela provavelmente jamais (re)leria. Breve composição do cenário.
(fragmento meu)

Wednesday, September 30, 2009

à guisa de excesso

a real é que é de tombar a inércia que me toma quando fico defronte ao computador. ou será que meu quarto é que está com más energias? talvez jogar coisas fora, trabalhar um feng shui, colocar mais cactos, talvez.
é excessivo, sim, o trânsito, mas também são excessivas as buzinas e a irritação que toma conta. assim como reina o excesso de secura nessa cidade tão vertiginosamente ampla. são excessivas as drogas, os desejos de embriaguez, o desconhecimento de olhares e os compartilhares dos corpos. são excessivos constrangimentos de linguagem, máquinas no dia-a-dia, compromissos e lembretes. tanta excessividade me cansa, me consome, e de repente não mais me reconheço; perco o que me constitui? alento: ao menos intensamente, desboto.

Saturday, September 26, 2009

(sem título)

alguém me ensina a organizar a vida? ter que fazer escolhas é um lance muito difícil.

Friday, September 25, 2009

hermann hesse

Tal qual cada flor fenece
e toda juventude cede à idade,
floresce cada patamar da vida.
Toda sabedoria e toda virtude
também florescem a seu tempo
e não devem durar eternamente.
O coração precisa estar, em cada patamar da vida,
predisposto à despedida e a novo início
para, na coragem e sem pesar,
entregar-se a outras novas ligações.
E em todo começo reside uma magia
que nos protege e nos ajuda a viver.
Temos de transpor, dispostos, espaço a espaço,
e a nenhum nos apegar como a uma pátria.
O Espírito Universal não nos quer prender e limitar:
quer erguer-nos degrau a degrau, quer nos ampliar.
Mal nos habituamos a um ambiente,
sentindo-o familiar, ameaça o acomodar-nos.
Só quem esteja pronto a partir e viajar
talvez escape do hábito paralisante.
Talvez ainda a hora da morte
nos envie, jovens, a novos espaços;
o apelo da vida a nós jamais há de findar.
Vamos lá, meu coração: despede-te e convalesce.

Sunday, September 20, 2009

diz que é sem compromisso

flores amarelas, alguma terra no chão, clima ameno, céu profundo de pré-primavera, até as pintas vermelhas do colo tão branco se eriçam quase no encontro do ombro com os pescoços.

crianças tranqüilas um gato que roça olhos ariscos e cúmplices

algum carinho, certo na discrição e nos limites. desmancha em flor, laço roxo do vestido.

Friday, September 04, 2009

forjei asas nos meus

quando o acaso é de pétala, e o silêncio assombra a madrugada recém-descoberta. letargia e ressaca, ainda que haja fórceps.

Condicional - Los Hermanos
(Rodrigo Amarante)

Quis nunca te perder
Tanto que demais
Via em tudo o céu
Fiz de tudo o cais
Dei-te pra ancorar
Doces deletérios

Eu quis ter os pés no chão
Tanto eu abri mão
Que hoje eu entendi
Sonho não se dá
É botão de flor
O sabor de fel
É de cortar.

Eu sei é um doce te amar
O amargo é querer-te pra mim
O que eu preciso é lembrar, me ver
Antes de te ter e de ser teu, muito bem

Quis nunca te ganhar
Tanto que forjei
Asas nos teus pés
Ondas pra levar
Deixo desvendar
Todos os mistérios

Sei, tanto te soltei
Que você me quis
Em todo lugar
Lia em cada olhar
Quanta intenção
Eu vivia preso

Eu sei, é um doce te amar
O amargo é querer-te pra mim
Do que eu preciso é lembrar, me ver
Antes de te ter e de ser teu
O que eu queria, o que eu fazia, o que mais?
Que alguma coisa a gente tem que amar, mas o quê?
Não sei mais

Os dias que eu me vejo só
São dias que eu me encontro mais
E mesmo assim eu sei tão bem
existe alguém pra me libertar.

Thursday, August 20, 2009

contingência (corpo mágico que expurga _____)

espinhas, aftas, secreções verde-amareladas, hálito purulento, cada unha roída, uma possibilidade.
bruxismo, compulsivo estalar dos dedos, torção de coluna para o conforto do sono que
não vem suores viradas reviradas que aflição terrível os embolamentos e a falta de liberdade que vai asfixiando a ponto de levantar
acender as luzes
arrumar a cama
deitar-se com cuidado meticuloso para o lençol não arranhar
e ignorar a espinha que estourou no travesseiro.

Wednesday, August 19, 2009

assombro

acordei pontualmente às sete horas, de acordo com o horário de brasília. as cobertas na altura dos joelhos e um sebo corporal além do comum denunciavam a agitação no sono de apenas quatro horas. por sorte, na noite anterior, lembrara de minha avó: peguei um copo d’água para deixar na mesa de cabeceira; minto, no banquinho de três pernas ao lado da cama que faz às vezes de mesa de cabeceira. tomei o copo em três vultosos goles, não sem antes esticar braços e pernas, e checar todos os dedos em suas devidas posições. nenhum formigamento, uma coceira aceitável na raiz dos cabelos da nuca, e uma tensão no pescoço, lado direito. vai dar pra levantar.
me lembrei do sonho. minha mãe, parada defronte uma casa – devia ser nossa, embora eu tenha certeza de que não era. eu chegava tarde da noite, parava o carro, ela ali, plantada, os olhos tão inexpressivos que se me comunicavam. disse que não conseguia entrar na casa sem mim. eu a abraço, com cuidado, comoção e compaixão. pego sua mão, encaro a casa, nem piscamos.

Saturday, August 15, 2009

[ensaio - parte 1]

Este ensaio deve se localizar em qualquer lugar entre o drama poético e o jogo político. O que me move é puro interesse: nada além do despertar sensações no extremo positivo diametralmente oposto ao pólo da indiferença. Posso argumentar que o interesse me foi incutido a partir de experiências de vida – genuinamente minhas ou por mim reivindicadas, o que, no fundo, dá no mesmo –, ainda que a concretude da experiência seja transversal, secundária ou mesmo suspensa em momentos alguns – o que, novamente, dá no mesmo. Vou procurar, aqui, levantar algumas questões que me sugerem relações intensas entre si, mas cujas formulações [das relações] me têm sido particularmente difíceis. Este ensaio servirá como um aglutinador desses meus questionamentos, temáticas e problemáticas, como uma junção de anotações esparramadas em cadernos e permeadas por flechinhas e outros desenhos, na dificuldade de elaboração mais clara que permita uma comunicação. Vejamos quão bem-sucedido poderá ser meu intento – considerar-me-ei satisfeita se vislumbrar entendimentos e, no horizonte, futuros frutíferos para as discussões aqui delineadas.

A angústia primeira que me impele a escrever é a tensão entre ação e estrutura, entre o poder desistoricizante do provável e a potência criadora do possível, que esbarra, por sua vez, nos limites da própria história, quando não nos limites da imaginação. Quanto da imaginação é de fato desafiante? Ou, ainda, quanto é possível subverter estruturas a partir de ações, sejam elas individuais ou coletivas? Suspender expectativas é subverter estruturas? É possível subvertê-las individualmente? E em quê consiste essa subversão? No questionar o que se vive? No adquirir autonomia sobre si? Autonomia perante quem, ou o quê? Autonomia de pensamento, de ação? Mas aprendemos que as idéias não caem do céu... A autonomia só poderia ser, portanto, condicionada – o que nos remete novamente a limites: qual é o limite das condições? A questão entre expectativa e coerência no desenrolar de sua própria história individual se mescla com as limitações do livre-arbítrio e a vida em coletividades e sociedade. Por fim, há que se fazer a ressalva de que muitas divisões aqui feitas são metodológicas; no fundo, parece-me no mínimo purista desejar encontrar desejos genuínos, sem influência contextual – quer em níveis pessoais e privados (história de vida de cada um), quer em níveis sociais e históricos.

Há alguns eixos centrais de idéia: política, ação, magia, história. Tentarei começar pelo primeiro. Como se desperta meu interesse em discutir política? A partir de contradições experienciadas, escancaradas, pressupostas, veladas. A partir da aparente aceitação generalizada de injustiças, ou, pior, ao ver, ao meu redor, aceitação – desprovida de angústia – das contradições. A mim, a angústia vem da repetição incessante de mortos de fome no mundo inteiro, ao lado de crescentes avanços científicos na produção de alimentos. Vem da grande mídia, quando se noticiam guerras em termos de perda de ‘recursos humanos e econômicos’ – não necessariamente nessa ordem. Vem acompanhada de revolta quando uma amiga muito querida me relata como foi expulsa de um barzinho, numa sexta-feira à noite, após beijar a namorada. Quando, numa recente visita a uma ocupação do movimento de moradia, uma moradora de um prédio vizinho, de classe média, diz que ‘também tem dó’ daquelas pessoas, mas que elas ‘preferem ficar ali’, não merecem melhorar de vida, porque não batalham pra isso. A angústia é inversamente proporcional ao sucesso da comunicação, e, nesses momentos, tudo o que consigo é silêncio assimétrico, não compartilhado e sequer reconhecido como comunicação suprema.

Thursday, August 13, 2009

breve lucidez

não que ela não fosse vaidosa; remendava todas as calças suas com fazendas de cores de fundo harmonizando as vestes surradas, e nunca repetia um vestido dois domingos seguidos, fosse para andar na praça, ir à missa, ficar de viés no portão. e não que ela não tivesse seu charme; tinha uma beleza tão pueril e o rosto queimado do vento do outono e tinha também qualquer coisa de triste dessas mulheres cientes da sua dita condição. e das dores rotas ansiando por qualquer escancaro de alma que trouxesse alento. mas mesmo assim, ela se repetia. saía todas as noites, voltava às vezes mais cedo, às vezes depois de almoçar uns cigarros. esticava as meias rasgadas no mínimo três noites seguidas, às vezes ganhava uma nova. e mesmo assim, se repetia. alternava as sextas-feiras entre banco, correio e cemitério, nas todas comunicações e cumprimentos de expectativas. a missa era quase domingo sim outro não. na saída, aproveitava almoçar com a mãe, lavava toda a louça divertia a sobrinha já engatinhando. mas mesmo assim. repetia. solidão é para os fracos. e segunda-feira, ninguém sabe, café preto e a sorte na esquina.

Monday, August 10, 2009

cantigas de cabaré

o dia é chuvoso, e as pessoas, reclusas.
qual não é sua surpresa quando um amigo telefona; o jantar será acalanto.

Wednesday, July 29, 2009

dispersões despertas

Batidas na porta da frente - é o tempo
Eu bebo um pouquinho pra ter argumento
Mas fico sem jeito, calada,
ele ri.
Ele zomba do quanto eu chorei
Porque sabe passar
e eu não sei.
Um dia azul de verão, sinto o vento
Há folhas no meu coração - é o tempo.
Nana Caymmi

hoje, voltava da minha aula de francês, dirigindo. tinha chovido, mas estava com sol, algumas nuvens bem densas e escuras de um lado do céu, e o outro lado já muito azul. no meio do caminho, desconhecido (dei carona pra uma amiga e acabei voltando por um caminho que nunca tinha feito) fui surpreendida por um arco-íris, que me trouxe qualquer coisa de algum lugar racionalmente intangível, e me fez brotar um sorriso.

percebi que o arco-íris é uno, holístico, e que seu centro está em toda a parte. mas sempre que ele aparece, toca qualquer coisa de muito profunda, sincera, que tem inclusive algo de pueril em sua tanta beleza. ele parece nos brindar tão-somente com aparições raras, sutis e fragmentadas, à espreita da distração que o aperceba. e viria daí seu charme apaixonante.

acontece que sempre que ele aparece e nos aflora essas sensações boas, deve ser porque ele se comunica com qualquer coisa da nossa história, da nossa memória, que faz sentido no passado e no presente. nos brinda, talvez, com a fragilidade absoluta e perfeita da vida. e a sensação que nos ilumina, num dia, vai desbotando ao longo dos outros dias, até que nos esquecemos da visita do arco-íris - para sermos lembrados pelo próprio, em mais uma aparicação magistral num futuro mais ou menos distante. e essa nova aparição faz aflorar novamente todas as sensações boas, a maioria delas inexprimíveis em palavras. alguém poderia dizer que é como um ciclo, mas não. não é ciclo, porque não tem início, meio, fim, e início de novo. como já disse, o arco-íris é uno, embora se nos mostre apenas em fragmentos.

tem sido presente, na minha vida, nas últimas semanas, pensamentos sobre a vida, a morte, o além. essa aparição desse arco-íris me fez perceber como tanta coisa da vida não tem início nem fim, como a vida em si não é início, nem a morte é fim - como já tinham tentado me ensinar os monges do templo budista em 2007, mas só agora comecei a entender o que isso significa. vida e morte se entrelaçam, e isso faz da vida absolutamente bela e una. a morte deixa, sim, muitas coisas mais difíceis de se compreender e até de se viver. mas encontro algum sentido quando penso que ela nada mais faz do que escancarar o caráter fragmentado e raro das aparições dos arco-íris. e lembro que a aparição rara, fragmentada e sutil, à espreita de qualquer falha na nossa vigilância que acometa de comoção nossos sentidos todos, nada mais é do que a percepção da presença infinda, infinita e perene (já que não há final).

presença do quê? não sei dizer ao certo. talvez seja mais uma dessas coisas que a gente só sente, e que muitas pessoas dão nomes diferentes. amor, pessoas, valores, ensinamentos, lembrança, memória, fé. o que sei é que isso se torna constitutivo da gente, e, como qualquer nova condição, é dolorosa, um pouco assustadora, e contém em si grande dose de beleza. o que nos é sempre ensinado é que, diante de condições um pouco assustadoras, a gente deve abrir o coração e compartilhar com aqueles cuja comunicação se faz mais facilmente (o pai, a mãe, o cachorro, as estrelas, o diário, o terapeuta, quer estejam nessa terra em carne e osso, quer não?). são eles que, na ação de compartilhar, desanuviam o susto e intensificam a beleza. sempre.

Monday, July 13, 2009

'moscou', de eduardo coutinho (ou: orgulho de ser brasileira)

diretor e produtor sobem ao palco para apresentar seu filme, antes da exibição no festival de cinema de paulínia. enquanto o produtor faz os agradecimentos de praxe, o diretor ronda o palco, observa as marcações no chão, olha para o chão, olha para cima, põe as mãos nos bolsos, puxa as calças que caem, o claro paletó desalinhado contrastando com a calça escura (ou seria o contrário?).

dedica o filme a joão moreira salles, aquele que o salvou do convento - destinação correta, segundo o próprio coutinho, caso o documentário fracassasse antes mesmo de tomar corpo. moreira salles assiste a algumas cenas e profere a sentença: 'sim, há filme'. coutinho vê que sua carreira não será anunciada em obituário, e segue o conselho do amigo: faz um documentário longo, em fragmentos, e sem se preocupar em fazer entender a história da peça teatral a ser montada.

pois o argumento de coutinho é gravar o processo pelo qual passa o grupo galpão de teatro, quando aceitam o desafio de montar 'as tres meninas', de tchecov, em três semanas (ou um mês?). a sugestão de moreira salles não foi senão coroar aquela que, imagino, já era a intenção de coutinho, em parte justamente por se tratar de um documentário: não fazer uma livre adaptação da peça de tchekov, mas usá-la como linha condutora dos processos internos, externos, subjetivos e coletivos pelo qual passam o grupo de teatro e seus indivíduos no início de uma construção e desconstrução, como o diretor da peça de teatro diz no início do filme, de uma peça teatral.

além disso, basta lembrar de outro célebre documentário do diretor: jogo de cena. nele, coutinho consegue magistralmente mesclar memórias , fazer aflorá-las, compartilhá-las, e construir, a partir de fragmentos com um quê de realidade (i.e., as memórias alheias), as memórias de tantos personagens. em 'moscou', não se tem certeza de quem são as memórias escancaradas na tela - ainda que, por vezes, em black out. mas a origem das memórias não tem importância. o que importa é a generosidade do compartilhá-las, sem saber quão efêmeras ou quão encrustradas nos corpos alheios elas ficarão.

eduardo coutinho dá um drible na centralidade da noção de verdade, e com isso desafia nosso apego às nossas próprias noções - estanques, corretas e só nossas. ele propõe compartilhar as verdades, inventá-las, relembrar cheiros e recolori-los depois. pega emprestado uma das mais belas coisas do teatro e a põe no centro de seu belíssimo filme: a inventividade.

Friday, July 10, 2009

sinal fechado

eu acho tão bonito quando o carro em que estou pára no cruzamento, rola aquela suspensão entre o seu sinal que ficou vermelho e o sinal dos outros que está prestes a abrir, e então o sinal abre, e eu gosto mais quando é faixa dupla, e tem um carro ao lado de uma moto, e os outros carros tratam a moto cm o respeito de carro - isto é, a deixam ocupar o mesmo espaço que um carro ocuparia -, e o sinal fica verde e o carro e a moto aceleram e saem andando juntinhos, o carro faz a curva fechada e a moto, a aberta. eu até acredito em harmonia, e em arte cotidiana, daí.

Wednesday, July 01, 2009

inspirada

a pétala da borda exterior a cor ainda viva o corpo exuberante sutil indício de meneio rumo ao desprendimento leve que a faria
, por fim,
flanar.

Sunday, June 28, 2009

dois poemas

Exausto
Eu quero uma licença de dormir,

perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

Adélia Prado

---------

Quero
Nos teus quartos forrados de luar
Onde nenhum dos meus gestos faz barulho
Voltar.
E sentar-me um instante
Na beira da janela contra os astros
E olhando para dentro contemplar-te,
Tu dormindo antes de jamais teres acordado,
Tu como um rio adormecido e doce
Seguindo a voz do vento e a voz do mar
Subindo as escadas que sobem pelo ar.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Wednesday, June 24, 2009

não esquecer

há a técnica, o pensamento, e as cachoeiras.

Tuesday, June 23, 2009

Mãos nos bolsos (Fragmentos I)

Não sabia, ou devia saber, do momento exato em que iria passar; levantei os olhos, a frase suspensa, encontrei os dele, mas ele não. Varou o pátio na altivez inconfundível, a magreza acentuada pela saúde débil e os recentes traumas, associados a vícios típicos, como o café e o cigarro sem filtro. Terminei a frase e perdi a linha do raciocínio, assumi: teria de reler todo o capítulo imersa em alguma concentração cujas possibilidades reais de existência tendiam a zero nesse momento.

Os espaços de convivência da Universidade andavam vazios no meio da tarde. Encheram de tardezinha, naquele dia, hora do teatro das dramáticas decisões políticas. Alguém podia ter levado um chimarrão ou café em garrafa térmica, para fazer jus à tipificação em curso por aqui, e, de quebra, combater o frio. A assembléia daquela tarde discutiria o estado da arte da mobilização estadual, e a greve, sim, companheiros, estamos em greve. O cenário é o já conhecido: alguns levantando as vozes no desespero de se fazer ouvir, entoando os pressupostos compartilhados e enterrando os dissonantes. Pois que há que se discutir, mas não agora. Os pressupostos, discute-se em mesa de bar, conversa miúda, mão por sobre o ombro, aperto firme na jaqueta, cigarro cedido, e o isqueiro.

Dá até pra discutir pressuposto no café-da-manhã, Betânia ao fundo, os corpos enebriados, ainda, da noite-vigília. Encanto erótico e amor é prato cheio pra discussão política: o mundo é encantado, então. E uma bebida quente pela manhã.

Saturday, June 20, 2009

Sêneca

Devemos misturar e alternar a solidão e a comunicação. Aquela nos incutirá o desejo do convívio social, esta, o desejo de nós mesmos; e uma será o remédio da outra: a solidão curará nossa aversão à multidão, a multidão, nosso tédio à solidão.

Sêneca, Sobre a tranqüilidade da alma.

Sunday, June 14, 2009

Notas sobre os processos de greve e mobilização

Stella Zagatto Paterniani junho/2009

Autonomia universitária. Essa foi uma das expressões mais utilizadas em 2007, entre estudantes, funcionários e professores das universidades estaduais paulistas. Em primeiro de janeiro daquele ano, o governador José Serra lançou uma série de decretos que restringiam a autonomia administrativa e gerencial da Universidade sobre seus recursos financeiros; desrespeitavam o ensino, a pesquisa e a extensão como o tripé da Universidade pública; e convergiam com o projeto político para o ensino que já há muito está sendo colocado em curso pelos governadores que se sucedem no mandato do Estado de São Paulo.

Esse projeto político visa, como a agenda política mais ampla do governo federal, diminuir os gastos públicos com os direitos garantidos por lei na Constituição federal de 1988. Na prática, transforma-se a educação em serviço vendável, assim como se ignora a autonomia científica e de pesquisa: quem passa a trazer mais verbas para a Universidade são as empresas, com seu capital privado e seu interesse de mercado. E são elas, portanto, que passam a ditar quais são as prioridades nas pesquisas. Se, por um lado, a Universidade pública deveria servir à sociedade e reverter benefícios sociais, por outro, é justamente por não estar descolada da realidade social que os produtos da Universidade voltam-se para uma pequena parcela da sociedade. A pequena parcela que tem acesso à Universidade, que financia suas pesquisas e que se insere no jogo do mercado.

Foi para marcar sua desaprovação à essa política posta em curso, pelos governos e reitorias, para questionar que tipo de Universidade queremos, para defender a autonomia universitária e o amplo acesso à Universidade por parte da população, e por outros motivos que se desdobram desses, que os estudantes da USP ocuparam a reitoria, os da Unicamp, a Diretoria Acadêmica, e os da Unesp, reitorias e salas de aula, no ano de 2007. E a mídia noticiou, e as pessoas comentaram, e discutiu-se política para a educação em salas de aula, em salas de jantar, em bares.

A desocupação dos prédios públicos aconteceu quando os estudantes se viram enfraquecidos pela mídia, que insistia em caracterizá-los como vândalos e criminosos. A estratégia do governo estadual foi expelir um Decreto Declaratório, assegurando, nos termos da lei, a autonomia das Universidades. Não satisfeitos, mas acuados, estudantes deixaram os prédios públicos, sob ação da polícia. Na presença da tropa de choque, alguns estudantes da Unesp foram presos.

O movimento reivindicatório universitário ergueu-se com os decretos de primeiro de janeiro, fortaleceu-se ao longo do semestre e enfraqueceu com o Decreto Declaratório. Não há como negar o peso da dimensão legal no processo, nem perceber, então, o poder da lei em escamotear projetos políticos: a autonomia universitária não começou a ser ameaçada com aqueles decretos. Desde o momento em que capital privado passa a financiar pesquisas universitárias, a autonomia de pesquisa fica comprometida. Se, por um lado, as leis não bastam como garantia de direitos – pois estão na Constituição, mas não são garantidos na prática, direitos básicos, como educação e moradia –, por outro, o fato de estarem na Constituição torna-se argumento poderosíssimo, mobilizado pelos movimentos sociais para adquirirem legitimidade e, com isso, apoio da população que muito se ampara nos ‘termos da lei’.

Proponho, então, uma retrospectiva para arrematar o argumento: a contestação do movimento universitário (principalmente, estudantil) à política para a educação e o desejo de defesa da autonomia universitária teve como estopim uma medida legal que selava e expressava uma política em andamento. Essa política em andamento, porém, não condiz com o que sela e expressa, legalmente, o resultado de um amplo processo político: a Constituição Federal. Vê-se que o problema, então, precede. Pois a Constituição Federal garante a educação como direito social.

Pois bem, feita essa breve retomada de uma dimensão do complexo processo de mobilização e greve estudantil de 2007, passemos aos dias de hoje.
No último dia nove, a USP virou palco de confronto escancarado, com direito a balas de borracha e bombas de efeito moral atiradas aos estudantes, pela Polícia Militar. Estudantes, funcionários e professores da Universidade dirigiam-se ao portão principal do campus do Butantã, em São Paulo, numa manifestação conjunta cujas principais reivindicações eram a retirada da Polícia Militar do campus e o fim do mandato da reitora Suely Villela. Alguns dias antes da manifestação, com funcionários e estudantes da Universidade já em greve, a USP amanhecera com cerca de cem viaturas da PM instaladas em diversos institutos e faculdades.

À diferença da época da ditadura, hoje, a polícia militar não tem permissão para entrar na universidade, a não ser quando tem sua presença requisitada. E a reitoria da USP requisitou. Se hoje a polícia não é permitida no campus, é porque já servira a fins de coerção, constrangendo estudantes, funcionários e professores que ousassem discutir o regime ou a repressão da época ditatorial. Em 19 de fevereiro deste ano, a Polícia Federal apreendeu os equipamentos da rádio livre que funciona na caixa d’água da Unicamp, a Rádio Muda. O argumento para legitimidade de tal apreensão? Um mandado judicial de 2007, que insiste em acusar a rádio de ilegal. Também neste ano foi apreendido pela polícia, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, um computador no qual funcionava um servidor livre que mantinha pesquisas em andamento. Sabemos a função coercitiva da polícia, como braço do Estado, que detém o monopólio da violência legítima. A PM é, então, o sujeito que detém o monopólio da violência legítima. Entretanto, quem define o que é violência legítima?

Não é legítimo (e aqui recorro novamente à Constituição Federal) que estudantes se formem no Ensino Médio sem perspectivas de continuar seus estudos superiores. Não é legítimo que o capital privado possa ditar rumos de pesquisas científicas nas Universidades. Não é legítimo que estudantes sejam agredidos, em espaço público, por ousarem discordar da privatização posta em curso nas Universidade Públicas, e se parece legítimo que o governo estadual opte por expandir vagas no ensino superior através do projeto do Ensino à Distância, não é legítima a ausência de possibilidade de escolha entre o ensino virtual e o presencial a que estão condenados os futuros estudantes da Universidade Virtual do Estado de São Paulo – que em si também não é legítima, enquanto a) não prevê “o princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”, conforme consta no artigo 207 de nossa Constituição, e b) é criada a partir de um decreto, que evidencia a indisposição governamental em construir um diálogo com a comunidade universitária.

No Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, estudantes, funcionários e professores estão em greve. Além da solidariedade à comunidade universitária da USP e do repúdio à presença da Polícia Militar no campus, a bandeira específica da greve é a contratação de professores. Houve redução de quase 50% do quadro de docentes, de dez anos pra cá, enquanto o número de estudantes cresceu. Sobrecarrega-se o professor, que, se quiser continuar com sua pesquisa – que não recebe capital privado por não ser de interesse imediato do mercado –, não pode se dedicar à formação dos estudantes. Os problemas de infra-estrutura também são alarmantes: a biblioteca, em reforma, foi inundada num dia de chuva forte, e correu-se o risco de perder parte de um riquíssimo acervo.

A greve acaba por ser o instrumento historicamente utilizado para deixar claro o posicionamento dos que contestam o status quo. Nesse momento, o desejo é chamar a atenção da população ao projeto político em curso na educação. Mobilizamo-nos e paramos nossa produção intelectual para nos dedicarmos a pensar sobre o projeto político privatista da educação e manifestar nosso descontentamento com esse tipo de Universidade. E quando a polícia militar é requerida na Universidade, e ouvimos, de outro lado, que é inadmissível a presença da polícia no campus, é hora de questionar, também, se é admissível a presença da polícia em outras manifestações de outros movimentos sociais. No centro da cidade de São Paulo, por exemplo, são muitos os pedidos de reintegração de posse de imóveis públicos ou privados, outrora ociosos e então ocupados, que são processados com a ação truculenta da polícia militar – muitas vezes envolvendo prisões e mortes de militantes. Esses imóveis são, também eles, pontos de ilegitimidade, se vistos sob o viés da Constituição, pois descumprem a função social da propriedade; e quando a reintegração de posse é cumprida, vê-se aí outra ação ilegítima: veda-se o direito à cidade, discutido e concretizado, em lei, no Estatuto da Cidade. É a polícia militar atuando na criminalização dos movimentos sociais, e fazendo uso de sua ‘violência legítima’. Legitimidade para quê(m)?

convergências

Thursday, June 11, 2009

miolina

mensageiro natural de coisas naturais
quando eu falava desse temporal
você não escutou
lô borges

me disseram que eu viesse aqui, pra pedir de romaria, eu só mostro meu olhar, meu olhar, meu olhar, estes teus olhos que foram tão meus, entenda, por deus, eu morro pensando no nosso amor.
espero a madrugada, meu coração dilacera, a pálpebra braseia e qualquer movimento cheira a crepitante. cheira a ruptura, cheira a processo. não é cessar o movimento, nem continuar no não-movimento; não é inércia pura nem sono sem sonhos. nem sono entrecortado. nem manhãs regadas a álcool, o hálito acetinado constante, não. o que eu quero é nada, nada, nada, nadamente.

(no começo do texto, referências às músicas 'romaria' e 'eu preciso aprender a ser só'; será que preciso citar isso aqui? bom, tá falado.)

Sunday, June 07, 2009

tanto sol

te ligo afobada e deixo confissões no gravador
chico buarque e tom jobim, anos dourados

me enrosco no tempo denso e frio, fungo o nariz no sábado e já é noite de quarta-feira. no almoço de domingo o sol vem me visitar. os pontos luminosos insistem pela semana, no cabo de um mês a alma percebe fotografias com sabor de bolero, e a certeza do desamor se esvai a fogo e ferro. salpicada de qualquer gosto de fruta madura, empantanando ávida em poesia e sol.

Thursday, June 04, 2009

dois poemas

um da alice ruiz:

saudade
de ver salinas
sentir de novo
o cheiro do sol
nas retinas

tocar você
e ver você sentir
o que tem de sal
no meu gosto de menina


, e um meu:


meu coração balanceia
e se enfeita dos enlaces mais bonitos.

ser mulher é arremate:
classe, desejo, obstinada
vagueia por entretantos,
trama o riso e encera
outras tantas primaveras
em tudo quanto é vislumbre.
incerto devaneio
de horizonte em veraneio
destarte, desponta em vulto
qualquer réstia de razão.

nem assombra!
brisa leve, acalanteia.
e enche a lua.

Tuesday, June 02, 2009

compulsão

polícia civil do estado de são paulo. quinze minutos de espera, nem dá tempo de imergir na leitura. uma bicicleta esbaforida fura a fila, beleza, agora eu termino um parágrafo. café ou chá?, tanto faz, desde que seja puro, é só o costume. não tem canetas nem papéis em cima da mesa, nem copinhos descartáveis ou lixeiras. não tem cenário. não tem choro, olhos vermelhos nem desgraça, nada do que deveria ter numa delegacia de romance com discoteca e cavalos-de-pau. nem tem greve, nem sarna. tem um funcionário público, pra não dizer que é deserto. não é melodrama, nem melancolia bucólica; claro que é burocratizado, mas isso não vem ao caso. ele é todo bem-humorado, usa uns óculos modernos, um cabelo já ralo, podia ser meu pai, mas não. olha nos olhos, tem o jeito de digitar de curso de datilografia, os punhos não saem do lugar. invejo; meu jeito de digitar é displicente e sem método, será isso também testemunho do meu tempo?, ele só usa maiúsculas, e nós as minúsculas, também isso?. sem saber, me afeiçôo, ele se afeiçoa, é mais do que compaixão ou cumprimento de protocolo. as piadinhas desanuviam, assino as cinco vias, antes eram nove, nem sei pra onde ia tudo, e me conta, eu perguntei, pra onde vai cada uma das cinco vias. maravilha de sistema; preciso também de um método. comece deixando de andar desacompanhada em vias escusas. os papéis voltam com a assinatura do superior. obrigada, boa sorte, tudibom. despedida on the rocks e a respiração se aprofunda. agora é o carro meio sujo, meio bagunçado, com o pneu dianteiro um pouco murcho, e um toca-fitas, no século vinteum, cantando uma emepebê de outra década, depois um rock rural e a velocidade constante. diminuída pros pedestres passarem.

Monday, June 01, 2009

nem vela

ousam dizer 'literatura feminina', ousam dizer do sexo por demais banal, por demais requintado, por demais extravasado por penas duplas, unhas por fazer. acho graça. vou ali ter um orgasmo e já volto, se deus quiser.

Thursday, May 28, 2009

sem chapéu-coco

quando o samba começava, você era a mais brilhante,
e se a gente se cansava, você só seguia adiante.
hoje a gente anda distante do calor do seu gingado,
você só dá chá dançante onde eu não sou convidado.

é minha a melodia que você roça com a ponta dos cabelos em movimento de leveza tão rara que enternece. é minha a cadência que você segue, os passos staccatos num lento-duro e a boca seca entreaberta. são caminhos incertos desenhados no inebriante porão, cheio de brisa de dama-da-noite. é desandar ao berros de juras de amor, excretar tanto cheiro de mulher, e tossir espasmo no sereno.

reza braba

laia ladaia sabatana ave maria

Puxa as mangas da camisa, no crepúsculo a temperatura cai, o otimismo cede, o corpo inerceia, não balanceia nem cai, permanece na tortura, as costas puídas pelo café com ou sem açúcar, depende da companhia e dos minutos que restam. Massageia o entre-olhos, o locus do terceiro olho, dissera a estagiária que nem tinha mais idade praquilo, tem gente que não toma vergonha, os cabelos raleando e a cara lavada, nem um risquinho de lápis, será que queria botar banca de? O terceiro olho tinha o quê da relação sua com espiritualidade, não, não tô falando de religião, é espiritualidade, você, o cosmos, energia, rio, árvore, vela, macumba, vivo ou morto, o que fizer sentido pra você. Estralou as costas na lembrança dos esportes deixados de lado porque. Espiritualidade pode ser batata-frita às três da tarde? Botou até adoçante no café.

Tuesday, May 26, 2009

nem balzac

a caio fernando abreu, pode?

tá, então, vamos lá. é um tal de abrir janelas mas manter cortinas próximas, um ou outro vão de luz só que é permitido, tem que ter cuidado, as sutilezas. abafamento. os lascivos feixes de luz entram carregados de pó acumulado naqueles excessos de tecido. e então é um tal de hospital, de bolo na garganta e pernas bambas, e a obstinação carregada de responsabilidade e certeza, mas a mão trêmula denuncia qualquer outra coisa na curva para avistar a entrada do quarto, boa tarde, como vai, beijo na mão, abraço, carinho. e é um tal de sexo casual, ligações breves cheias de dedos, as sutilezas, as sutilezas. são músculos doloridos no início da semana, uma ou outra coceira no corpo ardido que pede arrego, a densidade dos cheiros no lençol, nos livros por terminar, qualquer coisa que impregna, quarta, quinta-feira. e então correm boatos, são desejos, é o trabalho de manhã, reunião, café e alguns gostos que se misturam, azedo, amargo?, laterais da língua. e é comida de mãe, é varar a madrugada, quisera ao som de um blues ou bolero, é varar a madrugada com as pálpebras queimando. não é choro, nem tesão. é a tensão entre crítica e resignação. todas as noites, até adormecer; todas as manhãs, esforço hercúleo pra levantar. e levanta, que o mundo não tarda, e cutuca.

Monday, May 18, 2009

As lanças do crepúsculo

Lição de esperança, igualmente, o modo como os Achuar vivenciam a sua identidade coletiva sem se embaraçarem com uma consciência nacional. Ao contrário do movimento histórico e ideológico de emancipação dos povos que, a partir do final do século XVIII na Europa, quis basear as reivindicações de autonomia política apenas no compartilhamento de uma mesma tradição cultural ou lingüística, os Jivaro não concebem sua etnicidade como um catálogo de traços distintivos que dariam substância e eternidade a um destino compartilhado. Sua vida comunitária não se justifica pela língua, pela religião ou pelo passado, nem sequer pela ligação mística com um território encarregado de encarnar todos os valores instituindo sua singularidade. Ela se alimenta de um mesmo modo de vivenciar o vínculo social e a relação com os povos vizinhos, às vezes sangrento, decerto, em sua expressão cotidiana, não pelo banimento do outro na desumanidade, mas por uma consciência aguda de que ele, quer seja amigo ou inimigo, é necessário para a perpetuação do eu. Os Achuar me ofereciam assim a demonstração a contrario de que os nacionalismos étnicos, em toda a eventual barbárie de suas manifestações, são menos uma herança das sociedades pré-modernas do que um efeito de contaminação de antigos modos de organização comunitária pelas modernas doutrinas da hegemonia estatal. O que a história fez ela pode desfazer, prova de que o tribalismo das nações contemporâneas não é uma fatalidade e que a nossa atual maneira de representar a diferença através da exclusão talvez possa algum dia dar lugar a uma sociabilidade mais fraterna. (Descola, As lanças do crepúsculo, 2006, pp. 459-460)

Sunday, April 19, 2009

[um início]

A bailarina era ou não era tão leve quanto parecia, pensou, enquanto a recuperava do chão. Sem mais corda na caixinha de música, não durante os girares remanescentes. A gritaria cessara, alguma canseira contornava os batentes das portas. Um pouco de terra no chão, nenhum caco de vidro, riscos de caneta em tecidos mais ou menos nobres. Alguma réstia de sol, e um canto qualquer de passarinho anunciou bom dia. Deixou-se desmontar na cadeira de couro tão envelhecido, alguns espasmos imperceptíveis a olho nu vagando pelo corpo. Qualquer desatenção na mente seria bem-vinda, eleitas foram as asas de cupim esparramadas no parapeito da janela; só aumentaram a aflição, e aos espasmos somaram-se arrepios na base da coluna, o grotesco pelo inseto que corrói. Bateria com os nós dos dedos no parapeito da janela para constatar o pó da madeira destruída. Uma brisa desmontaria a estrutura de uma casa nessa situação, pensou de relance; inspirou forte na ânsia de um vendaval.



Bailarina, de Miró.


Friday, April 17, 2009

Canção.

Fecha essa janela
que o barulho aqui de dentro
não me traz recordações.

Tiro estes sapatos,
me desnudo, me desfaço
e faço acordes, sem cordões.

Dorme feito as frestas
do Sol doce que te afaga
e dá licença de pousar.

Ensaio um riso leve
de ternura de criança
de quando o Natal chegar.

Vai, não te levanta.
Canto a ti e canto à toa,
como quem enche balões.

Vem, não me incomoda
a nudez doce, rio à toa;
contigo a rodopiar.


(Esse poema meu saiu numa edição online da Revista Cult :))

Thursday, April 09, 2009

Nem poeira

Parece-me não haver dúvidas de que o movimento estudantil, na sua atual configuração, e na verdade de imediato, desemboca justamente na tecnocratização da Universidade, a qual quer supostamente impedir.
Adorno, em carta a Marcuse, maio de 1969.

Sunday, March 29, 2009

Relato de uma recente experiência católica

Há cerca de dois meses atrás, fiz uma promessa. Se desse certo, a penitência por mim proposta e que deveria, também por mim, ser cumprida, era ir à missa todos os domingos durante a quaresma, os quarenta dias que antecedem a páscoa – período, na doutrina cristã, de intensa introspecção e meditação acerca de sua vida, seus caminhos, seus pedaços e coerências, seus valores e ações.

Pois bem. O desejo vingou; tinha eu agora que fazer a minha parte do combinado.

Compareci e participei, no meu entendimento, de maneira bem ativa das missas: prestei atenção nas leituras e refleti sobre elas, bem como nos temidos sermões – as homilias, que, pra ser sincera, se pareciam intermináveis há dez anos atrás, hoje desejei que fossem mais longas, na esperança de alcançar profundidade –, ponderei sobre o tema da campanha da Fraternidade, arrisquei a entoar os cantos (alguns são os mesmos desde minha meninice, de quando fazia catequese). Já que ia dar uma de pagadora de promessas, que o momento servisse para reflexões pessoais sobre as minhas espiritualidades. Parecia fazer sentido atentar praquele mundo cristão, mais especificamente católico, com o qual eu tenho mantido uma relação oscilante, de afastamento – por discordâncias quanto a posturas na vida, valores e práticas – e aproximação – por desejo de fé – nos últimos anos. Fazia sentido mergulhar naquilo, e ver se podia ser algum lugar meu, também.

Acontece que a falta de profundidade nos sermões; as inexistentes problematizações acerca dos conceitos que compõem o lema da campanha da Fraternidade – a saber, paz, justiça e segurança pública –, as inexistentes respostas para minhas dúvidas tanto cerimoniais/rituais como cosmológicas/histórico-mitológicas e incongruências entre minha vida e algumas idéias genericamente denominadas como católicas, tudo isso me fez perceber que aquele lugar, o lugar da Igreja, não era meu. Não era meu e eu não desejava compartilhá-lo. O pagamento da promessa estava mesmo se transformando em sofrimento – elemento fundamental da vida terrena, segundo a doutrina cristã.

E então comecei a questionar o porquê da minha promessa. Ou melhor, o porquê da penitência elencada por mim ter sido comparecer a/participar da missa. Elaborei a seguinte hipótese: a penitência já estava imbricada do desejo, à época (re)aflorando, de reaproximação minha do universo espiritual, e a igreja e a missa foram os primeiros locus que me vieram à mente para empreender isso àquelas circunstâncias, inclusive porque desconhecia (e desconheço) outras espiritualidades que tenham mecanismos de troca como a promessa e sua penitência.

Além disso, a promessa já tinha sido feita, e a dádiva, obtida (ou a graça alcançada, como se diz), então eu não podia simplesmente abandonar a parte que me cabia no pacto aparentemente determinado exclusivamente por mim – afinal, eu é que propus a ida à missa durante os domingos da quaresma como penitência. Porque, uma vez tendo recorrido à estratégia/ao exercício da promessa como esperança ou acalanto, só cabia a mim olhar para esse evento de acordo com sua lógica interna. Não parece cabível desencanar de pagar a promessa porque a penitência não faz mais sentido; ela faz sentido justamente porque é penitência, ainda que como ação isolada seja esvaziada de sentido, pra mim. Em termos concretos: eu já teria parado de ir à missa aos domingos, não fosse para pagar a dita-cuja da promessa já feita.

Resta aproveitar o tempo que me resta de cumprimento da penitência para pensar qual pode ser o locus do meu contato mais íntimo e desenvolvimento das minhas espiritualidades. Tem uma conclusão bonita que posso tirar dessa história: que não me foi possível instrumentalizar a penitência (ainda que instrumentalizar, aqui, tivesse um sentido positivo e otimista: minha imersão individual no meu lado espiritual). Uma vez definida para cumprir a função que fez sentido dentro de uma lógica específica (a da estrutura/dádiva/dívida – promessa/graça/penitência) não me foi possível retirar um dos elementos (a penitência) dessa tríade pra realocá-lo num contexto em que ele, sozinho, deveria tornar-se sujeito/objeto de outra missão (minha incursão pela minha espiritualidade). Se isso desse certo, teria sido bonito, de qualquer, jeito. Não deu, então pelo menos teoricamente, continua sendo bonito; afinal de contas, sempre fui defensora ferrenha da não-separação entre semântica e pragmática, e da não-dissolução dos laços semânticos e pragmáticos entre elementos de uma determinada formaconteúdo de pensamentoação. É, no fim das contas, eu devo ser uma conservadora - pagã.

Thursday, March 19, 2009

pro dia nascer feliz

o banho frio no verão, desejo mais visceral. apressa que tá começando! sai no pinga-pinga, cabelo embaraçado, corre na elegância da toalha enrolada. ninguém duvida do bom-humor, ri alto e escancarado, a pele preta de cetim; eu colocava uma flor no cabelo, assinando embaixo de tanta prosa de mulher feliz.

(sambando na lama de sapato branco.)

Sambando na lama de sapato branco, glorioso
Um grande artista tem que dar o tom
Quase rodando, caindo de boca
A voz é rouca mas o mote é bom
Sambando na lama e causando frisson
 
(...)
Cantando e sambando na lama de sapato branco; glorioso
Um grande artista tem que dar lição
Quase rodando, caindo de boca
Mas com um pouco de imaginação
Sambando na lama sem tocar o chão
 
E o tal ditado, como é?
Festa acabada, músicos a pé
Músicos a pé, músicos a pé
Músicos a pé
 
Sambando na lama de sapato branco, glorioso
Um grande artista tem que fazer fé
Quase rodando, caindo de boca
Aba de touca, jura de mulher
Sambando na lama e passando o boné
 
(...)
Cantando e sambando na lama de sapato branco, glorioso
Um grande artista tem que dar o que tem e o que não tem
Tocando a bola no segundo tempo
Atrás de tempo, sempre tempo vem
Sambando na lama, amigo, e tudo bem
 
E o tal ditado, como é?
Festa acabada, músicos a pé
Músicos a pé, músicos a pé
Músicos a pé
 
Sambando na lama de sapato branco, glorioso
Um grande artista tem que estar feliz
Sambando na lama e salvando o verniz

Chico Buarque, Cantando no toró
Para tentar se livrar da acusação de homicídio, o advogado do austríaco disse que Fritzl não queria matar os filhos, mas "construir uma segunda família no porão de casa". Para isso, teria decorado o cativeiro com um papel de parede do Mickey para criar uma "atmosfera de lar".

http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u537210.shtml

Wednesday, March 18, 2009

"não esquecer que é tempo de morangos"

Chega mais perto, contempla as palavras. Suspende no entorno as vontades que alucinam. Gira leve, toca a flor. Pétala é olhar recém-nascido. Arrisca o toque, sustenta a proposta. Oscilação é charme real, tão reais a sutileza e a força. Palpita, sugere com afinco e verde-grama. O céu permite, observa. As nuvens loiras nem cochicham; seguem tranqüilas. O mundo segue, rápido, difuso, opaco. A translucidez é por nossa conta. O risco é quase suposto – mas não é. Aguça, cantarola, ternureia. Desfaz o nó esgarçado; enlaça com cuidado. Movimenta as mãos, um balé semi-cheio de floreios e passos marcados. Estanque, pousa as mãos, firmes-leves cataventos. Finda o dia, pinta a noite – irretocáveis borrões. Propõe o óbvio num sopro, e num suspiro atinge o ápice.

Dance me to your beauty with a burning violin 
Dance me through the panic 'til I'm gathered safely in 
Lift me like an olive branch and be my homeward dove 
 
Dance me to the end of love 
Dance me to the end of love 
 
Let me see your beauty when the witnesses are gone 
Let me feel you moving like they do in Babylon 
Show me slowly what I only know the limits of 
 
Dance me to the end of love 

Bob Dylan, mas a minha versão é da Madeleine Peyroux


Thursday, March 12, 2009

girassol confesso

e quando o crepúsculo dói nos ossos, a boca seca, o ar vermelho, meu coração ramifica - e quando isso? e quando a vontade retumba o passado, abafa as razões longínquas, e permite o devaneio? e quando o devaneio sincereia? meu corpo é molhado, a visão é turva, nada desanuvia, e quando a morada é ausente, e quando os passos são de vai-e-vem, mas nunca de ida nem volta? e quando o motor é falho, a engrenagem é gasta e os óculos, fora de moda? e quando é embalagem pra presente e olhar de rabo de olho no meio-fio, a lua alta, algumas cervejas ou um conhaque, uma ou outra proposta, a porta do motel? e quando a lua é vazia, meus cabelos não repousam, meu toque arranha? e o intervalo desarmônico. roupas no varal, e quando é sol sem tréguas, garrafa tombada, e quando a música desacompanha o movimento, e quando o ridículo é despercebido e minhas mãos batucam o vácuo?

Saturday, March 07, 2009

prelúdio (ou retardo)

se você pretende enrolar seus braços em minha nuca, e soltá-los tão displicente num quase-roçar minhas costas, o beijo até onde a luz alcança e não alcança, o desejo dos corpos grudados, de sentir as peles todas em contato, as águas brotam de trás dos olhos, se você pretende seu corpo no meu corpo no seu corpos nus e os enlaces, jantar café-da-manhã e o restante do vinho, sorrir dos cheiros percebidos na memória, a mais profunda entrega reconhecida, embevecida por recortes na parede e o sorriso que confirma tudo, se isso, ah, se isso, garanto que sim.

Wednesday, March 04, 2009

Repúdio à Folha de São Paulo

http://www.ipetitions.com/petition/solidariedadeabenevidesecomparat/index.html

Manifesto

Ante a viva lembrança da dura e permanente violência desencadeada peloregime militar de 1964, os abaixo-assinados manifestam seu mais firme eveemente repúdio à arbitrária e inverídica “revisão histórica” contida noeditorial da Folha de S. Paulo do dia 17 de fevereiro último. Ao denominar“ditabranda” o regime político vigente no Brasil de 1964 a 1985, a direçãoeditorial do jornal insulta e avilta a memória dos muitos brasileiros ebrasileiras que lutaram pela redemocratização do país. Perseguições,prisões iníquas, torturas, assassinatos, suicídios forjados e execuçõessumárias foram crimes corriqueiramente praticados pela ditadura militar noperíodo mais longo e sombrio da história política brasileira. Oestelionato semântico manifesto pelo neologismo “ditabranda” é, a rigor,uma fraudulenta revisão histórica forjada por uma minoria que sebeneficiou da suspensão das liberdades e direitos democráticos nopós-1964.Repudiamos, de forma igualmente firme e contundente, a “Nota de redação”,publicada pelo jornal em 20 de fevereiro (p. 3) em resposta às cartasenviadas à seção “Painel do Leitor” pelos professores Maria Victoria deMesquita Benevides e Fábio Konder Comparato. Sem razões ou argumentos, aFolha de S. Paulo perpetrou ataques ignominiosos, arbitrários eirresponsáveis à atuação desses dois combativos acadêmicos e intelectuaisbrasileiros. Assim, vimos manifestar-lhes nosso irrestrito apoio esolidariedade ante às insólitas críticas pessoais e políticas contidas nainfamante nota da direção editorial do jornal.Pela luta pertinaz e consequente em defesa dos direitos humanos, Maria Victoria Benevides e Fábio Konder Comparato merecem o reconhecimento e o respeito de todo o povo brasileiro.

Tem mais samba no encontro que na espera

E quando a memória encrustrada no corpo oscila entre a tonelada sobre os ombros e a leveza do sambar? Acontece o campo de visão ampliado, sensibilidade à flor da pele, mente desanuviada no embalo da harmonia, o corpo cedendo à marcação mais grave. Na reciprocidade que o tempo apresenta aos sedentos de encontro, o samba é anfitrião.

tem mais samba no encontro que na espera,
tem mais samba a maldade que a ferida
tem mais samba no porto que na vela
tem mais samba o perdão que a despedida
tem mais samba nas mãos do que nos olhos
tem mais samba no chão do que na lua
tem mais samba no homem que trabalha
tem mais samba no som que vem da rua
tem mais samba no peito de quem chora
tem mais samba no pranto de quem vê
que o bom samba não tem lugar nem hora
o coração de fora
samba sem querer

vem que passa
teu sofrer,
se todo mundo sambasse,
seria tão fácil viver


Vinicius de Moraes, Tem mais samba.

Wednesday, January 14, 2009

Banho-maria

Guerra.
Fiquei um tempão pensando em como escrever um post sobre guerra.
Não consegui; meu cotidiano é ir ao supermercado, pensar e discutir sobre guerra, e tomar chá, com alguns vislumbres de carinho familiar.

Thursday, January 08, 2009

(Fragmento)

Porque há a inação, mas há também a ação. Há o fazer bonito, a história enlameia os dedos e a gente brinca de grudar a desgrudar. Lembro-me de um ocaso no sítio. Tinha os olhos vermelhos de tanto chorar a vida sofrida do menino do livro que peguei, escondida, da estante da vó. Devia eu ter meus dez anos. Subi a escadaria da casa, que era tão grande no meu sentimento, subi a escadaria e entrei no último cômodo. Era o quarto de tia Bá, lembro da coleção de bonecas que me metiam medo. Do cheio dos jornais empilhados, alguns recortes colados no armário, hoje entenderia o vigor daquilo tudo. Não era bagunça nem enfeite, era sentido de vida, expressão de luta e crença. Ardia. Ardiam meus olhos quando lia da vida do menino, das peraltices, da infância espancada e das vozes caladas, e não sabia o quanto disso ainda subsistia ao meu redor, naquelas colagens no armário. Mas gostava de ficar no quarto, era o meu favorito, e apesar dos olhos e sorrisos estáticos das bonecas, eu permanecia, e até cerrava os olhos. Depois desci, comi bolo com refrigerante na copa, e eu queria tanto abraçar e beijar a minha vó, e dizer a ela o quanto eu a amava, que os dias de sofrimento eu queria tirar dela, todos os dias de sofrimento eu queria expurgá-los do corpo e da memória da vó, a vó que era tão boa e me dava sempre meio comprimido de vitamina C quando eu queria, não precisava ficar doente, não, porque era bom prevenir. A vó também cuidou dos meus canarinhos, e eu não disse isso pra ela, mas nem fiquei muito triste quando um deles morreu, porque eu sabia que ela tinha cuidado deles. Acho que ela ficou mais triste do que eu, mas então eu senti mais minha tristeza, porque quando a gente sente tristeza junto até que é bom, até. E o fingimento vira verdade, porque a vontade de sentir junto é tão profunda que faz do inventado, real.

E qual não é real inventado? Como hoje, quando acordei num susto, com um sussurro ‘se cobre’, e meu coração acelerou e eu gritei de susto, mas me cobri e descobri que o susto fora acalanto. Acalanto era a forma dos cabelos e da silhueta toda que me alertou para o possível frio.

É a naturalidade de alguns encontros anulam potenciais enfrentamentos. O consciente ou historicizar catalisa potenciais tensões. Historiar é misturar criatividade e experiência, e potencializar enfrentamentos e deslumbres, num fluxo que é todo-narrativa. Assim, o passado chôro pela infância sofrida do menino se entrelaça com o sussurro de acalanto, e na não-sobreposição existem os interstícios, que se unem na minha memória e na história contada para meus netos no porvir.

Saturday, January 03, 2009

Desejo

Uma prima muito querida me enviou este texto no ano-novo. Assim como muitos de vocês, eu já conhecia. E resolvi postar os pedaços que achei mais bonitos aqui. Pra lembrar, pra marcar, ou selar qualquer (re)início que se deseje.
Que 2009 seja lindo! :)

Desejo primeiro que você ame.
(...)
Desejo também que tenha amigos,
Que mesmo maus e inconseqüentes,
Sejam corajosos e fiéis,
E que pelo menos num deles
Você possa confiar sem duvidar.
E porque a vida é assim,
Desejo ainda que você tenha inimigos.
Nem muitos, nem poucos,
Mas na medida exata para que, algumas vezes,
Você se interpele a respeito
De suas próprias certezas.
(...)
Desejo ainda que você seja tolerante,
Não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
Mas com os que erram muito e irremediavelmente,
(...)
Desejo que você, sendo jovem,
Não amadureça depressa demais,
E que sendo maduro, não insista em rejuvenescer
E que sendo velho, não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e
É preciso deixar que eles escorram por entre nós.
(...)
Desejo que você descubra ,
Com o máximo de urgência,
Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos,
Injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta.
Desejo ainda que você afague um gato,
Alimente um cuco e ouça o joão-de-barro
Erguer triunfante o seu canto matinal
Porque, assim, você se sentirá bem por nada.
(...)
Desejo também que nenhum de seus afetos morra,
Por ele e por você,
Mas que se morrer, você possa chorar
Sem se lamentar e sofrer sem se culpar.
(...)

P.S.: Primeiro post de 2009, e é o post número 101 do blog. Que legal!