Tuesday, March 29, 2011

jobiniana

porque o amor é descrente e a literatura quase infinita
faço ao menos um poema por dia e me apaixono
duas ou três ou cinco vezes na semana.

aos amores, não há dedicatória: imortalizo-os.

isso de mim exige renúncia e tédio
que remedio alternando vulgaridade, excessos,
e um meticuloso gestual cúmplice em vingar cada sonho que cai por [terra.

Sunday, March 27, 2011

breve ensaio sobre as estações (ii)

inverno


o inverno é o desafio à tranquilidade d'alma. é o tempo da lentidão e das intensas solidões todas em rotações por minuto sentidas. na europa, o inverno é o encontro consigo em xícaras de chá; nos trópicos, é chuva que encharca os destemidos e assusta os precavidos – a ambos angustia, e há todos os truques e práticas no anseio pela calmaria (eu, particularmente, sou adepta da queima de uma folha do ramo de palmeira bento, pedindo proteção à santa clara quando a tempestade desespera).

Thursday, March 24, 2011

breve ensaio sobre as estações (i)

verão

o verão nada mais é que a letargia. não; o verão é o êxtase, a catarse, a nudez em conforto porque quente. o verão não são gotas de suor; o verão é o sal que marca a roupa, é a boca seca e corpos que entre si deslizam no amalgamado de cheiro denso. o verão é a estação do sexo mais feroz e sensual, é a estação do vigor corporal que garante a tranqüilidade d'alma – porquanto não a contém.

Friday, March 18, 2011

coração bobo

foi um deslize sedutor.

um salto no raciocínio
aparentemente condenável mas
encantadoramente retórico quando se trata de assuntos do coração.

e eu rasguei meu peito
fazendo duma acrobacia barata
olhos brilhantes pelo salto mortal

Sunday, March 13, 2011

not supposed to hit

ela saiu para o trabalho não sem antes carregar na maquiagem um pouco mais do que o costume. pela noite indormida, o corpo já começava a pedir descanso antes das oito da manhã. um banho ora quente ora frio servira para dar realce e acalmar um pouco os hematomas recentes (a água sempre traz as dores pra superfície do corpo, e um roxo se espalhando na pele permite maquiar de dor-de-pancada o choro de sufoco, humilhação e desespero). antes de sair, passou café e alisou a gola daquele colarinho, a camisa impecável num cabide pendurado no puxador do guarda-roupas. tomou uma xícara que caiu de golpe no estômago em jejum. é que se maltratar também é bom, às vezes, quando a encruzilhada inexiste e ser cúmplice na agressão é a única possibilidade. saiu sem dizer palavra; ele folheava o jornal sem reclamar do café forte, a camisa agora ainda semi-abotoada. quando girou a chave já do lado de fora do apartamento, cravou fundo a unha do indicador direito nas costas da mão esquerda: a marca não a deixaria esquecer de pegar as roupas na lavanderia depois do expediente. sentiu o café revirar no estômago, enquanto descia as escadas do prédio: dali dois dias seriam anfitriões no jantar anual da família, e ela sequer tinha pensado no quê servir como entrada. tateou a bolsa, abriu o carro, revirou a pasta com as anotações para a reunião de apresentação dos primeiros resultados que presidiria assim que vencesse o trânsito da cidade. digitou 'bom dia. amo você' no celular, enviou pra filha que mora longe, e deu a partida.

imagem daqui

Saturday, March 05, 2011

um retrato a uma estrangeira

eu moro num país onde as pessoas morrem
de fome
de tiro à queima-roupa
de amores e ciúme
de acidente de trânsito

nunca ninguém morreu de fome nos meus braços.

soube de quem morreu depois de jogar futebol;
antes de nascer;
vi quem morreu de desistência do corpo
e de surpresa, também
vi quem morreu despencando
e vi corpos bonitos de mortos serenos

eu vi quem nasceu cabeluda do ventre da viúva
e quem renasceu encovada de força antes dos trinta

eu li cantos sobre cabelos de suicidas no rio,
esculachos quaisquer de poetas sobre o verdejar desses fios
mas antes disso

eu fui à missa de sétimo dia de uma suicida
que me sorria sempre quando confidenciávamos amores errados
e ainda antes disso

eu perdi a voz em batalhas esganiçadas

e me amarraram por qualquer descrença e me deturparam
a voz e a força e o delinear
e então sem me dar conta

eu passei a freqüentar igrejas e velórios
a sorrir mais, conversar com anjos
e ler notícias no jornal sobre gente na rua
com fome
com sangue e com morte
insistências fronteiriças
nos nossos países.

Wednesday, March 02, 2011

antielegia

eu te conquistaria
num piscar de olhos você sabe
já ter cedido aos meus encantos
quando quisesse
iria te despir tão lentamente
como da primeira vez

até o amanhecer
quando te levei café na cama
você sabe, eu te conquistaria
nos ovos mexidos,
no suco de laranja fresco,
nos horóscopos e na costumeira divisão dos cadernos do jornal

eu te conquistaria e é leve
certo e confortável, eu sei,
você me dedica seu amor mais sincero

eu te conquistaria e você
você virou os olhos vestida e com as pernas cruzadas
não como (guardo na memória) nua quando empantanada em meu gosto
você se levantou e deu as costas
e abandonou a cadeira enviesada
e você partiu de bicicleta com os cabelos bagunçados.