Sunday, August 29, 2010

um carinho

- é como uma caixinha de música, ela poderia ter dito, rodopiando displicentemente o indicador, num movimento circular que não se concluía com precisão e se alongava num carinho no meu antebraço.
- pode ser a valsa mais conhecida; se tocada numa caixinha de música, comove e encanta sem precedentes.
eu poderia ter fechado os olhos, então, e roçado as costas da minha mão bem de leve na penugem de seu rosto. e ouviria, num suspiro:
você? ué, você é minha caixinha de música, ou minha valsa. é tanto que tanto faz.
e estalaria um beijo.

Tuesday, August 24, 2010

retratos possíveis de um par de mãos

'mas essa gente aí, hein? como é que faz?'
adoniran barbosa, despejo na favela

eu gosto da maneira como as cenouras chegam fatiadas ao meu prato. eu não domino a arte de fatiá-las desse jeito; parecem maiores do que uma rodela de cenoura pode ser; maiores e mais saborosas.
mas eu não sei nada das mãos que as fatiaram. não sei se gostam de cenoura, se já almoçaram ou se, famintas, petiscam sorrateiras um brócolis dando sopa. não sei de seus planos, se seus filhos já lêem ou se elas já viram o mar. não sei se trabalham aos domingos, se preferem picanha ou feijoada, se assistem a novela das oito passando roupa ou de olho na panela no fogo pro almoço do dia seguinte. não sei se já tiveram que se defender de ameaças violentas; se, descontroladas, tiveram acolhimento; se cuidaram de algum coração em despedaço. não sei se têm rugas de tempo vivido, de acúmulo de sofrimento, de descuido em lavar roupa com pedra-sabão. não sei se essas mãos têm alianças abençoadas de uma união alegre. se o calor delas é cotidianamente compartilhado com o de outro par; e se o par é sempre o mesmo, se o toque é macio embora as mãos sejam ásperas, ávidas por conforto. não sei qual foi a última vez que essas mãos tiveram o cuidado que deveriam ter. sei que, esplendorosamente, cortaram cenouras há algumas horas atrás. mais nada.

Tuesday, August 10, 2010

uma breve história de amores (ou: tempo da delicadeza)

houve um tempo em que eu partia. quase todos os dias, quase sempre à mesma hora, deixava aquele reino tão íntimo e tão compartilhado, para me reinserir no outro cotidiano, igualmente real, que continha tantos sonhos quanto o outro, e assustava um pouco menos.

depois ousei ficar. por uma ou outra hora a mais, desafiar a rotina traçada. varar alguns dias, perder alguma noção do tempo.

foram alguns, esses tempos de ousar ficar. e foram vários os ficares ousados. distintos entre si, sempre repletos de significados (até na ausência de sentido, quando era o desafio do susto do absurdo que eu buscava).

sucedeu-se que agora havia o tempo da dança. da harmonia entre o ficar e o partir. até que... da harmonia fez-se a síncope. e não é a síncope que faz o samba? a dança se encheu de retumbares.

e do meu coração em arritmia, como na falta de ar imediata, faço suspender, até segunda ordem, os toques que enchem d'água atrás dos olhos.
suspendo o sorriso que jogo pro céu quando você me diz amores com seus olhos depois que me beija. fica em suspensão minha entrega. suspensão de suspiro, na calma da memória e do coração.