Thursday, December 23, 2010

febril

a poesia?
vai tão encrustrada em mim
(você que a assim deixou)
que já não a percebo,
os dias passam conta-goteando. desde que você partiu.

quer dizer
– você sabe porque as noites tem sido tão claras?
eu não prego o olho e culpo a lua
e pode chover e a lua pode
se nublar que continua
o clarão e o barulho da chuva no telhado
parece seu sibilo
eu quase arrepio
inspiro e seguro o lençol sob o queixo
embolo meus pés no cobertor
e encarinho-me o rosto antes do espreguiço.

expiro e você é quase um holofote
e não sinto meu estômago porque em sonho (quando há) seu perfume me
[enche d'água e me cega e acordo e tateio
e verto em mim o que há na mesa de cabeceira e me resfrio

e não há barulho que distraia
silêncio que entorpeça
palavra que instigue ou aconchegue
tanto quanto as suas doçuras irreveláveis.

então sigo meu dia e pinto e escrevo
pra você escrevo uma confusão de perfumes
e tento pintar outro silêncio
que não aquele seu de dizer amores e preencher
mas o silêncio que pinto não te tem e não me tem e não há cores e só há água
há água e desidratração e me lembro
– não se esqueça de respirar
, e respiro

mas se respiro me inflo de cores que só a nós pertenciam,
e eu não sei tê-las sem você. então
respiro e sou só edema. não há extravasares, não há quem contenha. me
[inflo.
e à noite choro, e a lua clara holofote é tanta e insiste
e machuca meus olhos já tão secos. e sou toda secura, então,
também em garganta e suor (que seca o dentro) e coração cansado e me
[esqueço das outras partes do corpo

deito exausta e se fecho os olhos ardem
quem dera de tesão quem dera
de choro ou cansaço. ardem de não saber mais nosso encontro, como arde
[meu dorso todo de não saber mais seu toque
e me assombra seu sorriso e preciso segurar minha cabeça com as mãos
e não respirar
e você é toda-beleza e com ternura me pergunta
e me assombra seu rosto seus músculos suas contrações sua pergunta
me assombra sua pergunta
de como anda a poesia.

Monday, December 20, 2010

poema de percepção do luto

Num rascunho de poema
descubro: só sertão em mim habita
desde o ano dos velórios.

Não são temas de esconjuro,
linhas tortas ou cascatas
de infatigados dramas, não.
São escritos circulares
insustentáveis pois sem centro;
é quase desespero
contido
pois não é.

Nem é só tristeza
nem amargor nem cansaço.
É insustentável peso sem
o reboque da leveza.

Tuesday, December 14, 2010

uma elaboração de sentires

cada vez que eu tomo um banho, sinto os cheiros de costume, eu me lembro de você. a sua ausência durou o tempo exato de um pote de condicionador. o tempo exato de experimentar outra regularidade, outro cheiro. outra reação e um diferente caimento dos meus cabelos depois de banhos extraordinários. com outros ritmos, outros cheiros, outras aflições e um risco diferente marcando o vapor no espelho.

quando eu era criança, acumulava desenhos nos espelhos e nos vidros embaçados. no banheiro, depois do banho, e dentro do carro, quando chovia. eu sempre percebia que os desenhos nunca sumiam. a marca leve de cada um voltava com o novo embaçado, e eu, temperamental, oscilava sempre entre reforçar os traços muitíssimo bem-acabados ou dedicar-me a novas expressões.

hoje meu banheiro guarda em relicário um mosaico. traços que se justapõem, às vezes se sobrepõem, algumas vezes uma emenda faz surgir um novo desenho que eu só reparo muito tempo depois. me orgulho do meu mosaico; se há desbotamentos, superposições, desrespeitos estéticos e repetições, sei que tudo aparentemente opaco e embaraçado tem seu lugar, e são esses lugares os mais nobres. todos, cada um. há quem diga que é impressionista demais, esse meu mosaico, que só a mim me diz respeito e pouco comunica ao mundo. pode ser. me delicio em saber da minha história, e só eu, e só dela.

bicicleta

a bicicleta é a brincadeira mais libertadora. claro, quando seguidas as regras de como deve ser. não pode ter aquelas rodinhas, aquilo é pior que ensaio. andar de bicicleta é mais que improviso. tudo bem, tudo bem, ninguém nasce sabendo improvisar. o improviso só é bom depois de corpo e alma em exato equilíbrio entre condicionamento e liberdade. e não é ensaio que proporciona isso, não: é mergulhar, se empantanar em experiência. e é por isso (eu sei) que tem muito adulto bicicletador por aí. mas não basta vontade, não. tem que abrir, rasgar o coração.

Thursday, December 09, 2010

amarelinha

amarelinha é das brincadeiras mais gostosas: dá pra brincar sozinho, junto, misturado, competindo, ajudando. quando eu era criança, era difícil acertar a pedrinha nas casas mais longes (do sete em diante), então todo mundo juntava os pés, assim, e fazia casinha, que é como se fosse um gol (mas não é gol porque não tem trave nem rede, é só o pé, mesmo), pra segurar a pedrinha que a gente jogava (porque criança não sabe medir força, né, e as casas das amarelinhas também nem são tão grandes assim, então é fácil mesmo errar). e aí era só ir pulando, equilibrando, jogando a pedra e pegando, de um jeito tão ritmado que nem tem como confundir a ordem do que fazer.