'mas essa gente aí, hein? como é que faz?'
adoniran barbosa, despejo na favela
adoniran barbosa, despejo na favela
eu gosto da maneira como as cenouras chegam fatiadas ao meu prato. eu não domino a arte de fatiá-las desse jeito; parecem maiores do que uma rodela de cenoura pode ser; maiores e mais saborosas.
mas eu não sei nada das mãos que as fatiaram. não sei se gostam de cenoura, se já almoçaram ou se, famintas, petiscam sorrateiras um brócolis dando sopa. não sei de seus planos, se seus filhos já lêem ou se elas já viram o mar. não sei se trabalham aos domingos, se preferem picanha ou feijoada, se assistem a novela das oito passando roupa ou de olho na panela no fogo pro almoço do dia seguinte. não sei se já tiveram que se defender de ameaças violentas; se, descontroladas, tiveram acolhimento; se cuidaram de algum coração em despedaço. não sei se têm rugas de tempo vivido, de acúmulo de sofrimento, de descuido em lavar roupa com pedra-sabão. não sei se essas mãos têm alianças abençoadas de uma união alegre. se o calor delas é cotidianamente compartilhado com o de outro par; e se o par é sempre o mesmo, se o toque é macio embora as mãos sejam ásperas, ávidas por conforto. não sei qual foi a última vez que essas mãos tiveram o cuidado que deveriam ter. sei que, esplendorosamente, cortaram cenouras há algumas horas atrás. mais nada.
No comments:
Post a Comment