Stella Zagatto Paterniani junho/2009
Autonomia universitária. Essa foi uma das expressões mais utilizadas em 2007, entre estudantes, funcionários e professores das universidades estaduais paulistas. Em primeiro de janeiro daquele ano, o governador José Serra lançou uma série de decretos que restringiam a autonomia administrativa e gerencial da Universidade sobre seus recursos financeiros; desrespeitavam o ensino, a pesquisa e a extensão como o tripé da Universidade pública; e convergiam com o projeto político para o ensino que já há muito está sendo colocado em curso pelos governadores que se sucedem no mandato do Estado de São Paulo.
Esse projeto político visa, como a agenda política mais ampla do governo federal, diminuir os gastos públicos com os direitos garantidos por lei na Constituição federal de 1988. Na prática, transforma-se a educação em serviço vendável, assim como se ignora a autonomia científica e de pesquisa: quem passa a trazer mais verbas para a Universidade são as empresas, com seu capital privado e seu interesse de mercado. E são elas, portanto, que passam a ditar quais são as prioridades nas pesquisas. Se, por um lado, a Universidade pública deveria servir à sociedade e reverter benefícios sociais, por outro, é justamente por não estar descolada da realidade social que os produtos da Universidade voltam-se para uma pequena parcela da sociedade. A pequena parcela que tem acesso à Universidade, que financia suas pesquisas e que se insere no jogo do mercado.
Foi para marcar sua desaprovação à essa política posta em curso, pelos governos e reitorias, para questionar que tipo de Universidade queremos, para defender a autonomia universitária e o amplo acesso à Universidade por parte da população, e por outros motivos que se desdobram desses, que os estudantes da USP ocuparam a reitoria, os da Unicamp, a Diretoria Acadêmica, e os da Unesp, reitorias e salas de aula, no ano de 2007. E a mídia noticiou, e as pessoas comentaram, e discutiu-se política para a educação em salas de aula, em salas de jantar, em bares.
A desocupação dos prédios públicos aconteceu quando os estudantes se viram enfraquecidos pela mídia, que insistia em caracterizá-los como vândalos e criminosos. A estratégia do governo estadual foi expelir um Decreto Declaratório, assegurando, nos termos da lei, a autonomia das Universidades. Não satisfeitos, mas acuados, estudantes deixaram os prédios públicos, sob ação da polícia. Na presença da tropa de choque, alguns estudantes da Unesp foram presos.
O movimento reivindicatório universitário ergueu-se com os decretos de primeiro de janeiro, fortaleceu-se ao longo do semestre e enfraqueceu com o Decreto Declaratório. Não há como negar o peso da dimensão legal no processo, nem perceber, então, o poder da lei em escamotear projetos políticos: a autonomia universitária não começou a ser ameaçada com aqueles decretos. Desde o momento em que capital privado passa a financiar pesquisas universitárias, a autonomia de pesquisa fica comprometida. Se, por um lado, as leis não bastam como garantia de direitos – pois estão na Constituição, mas não são garantidos na prática, direitos básicos, como educação e moradia –, por outro, o fato de estarem na Constituição torna-se argumento poderosíssimo, mobilizado pelos movimentos sociais para adquirirem legitimidade e, com isso, apoio da população que muito se ampara nos ‘termos da lei’.
Proponho, então, uma retrospectiva para arrematar o argumento: a contestação do movimento universitário (principalmente, estudantil) à política para a educação e o desejo de defesa da autonomia universitária teve como estopim uma medida legal que selava e expressava uma política em andamento. Essa política em andamento, porém, não condiz com o que sela e expressa, legalmente, o resultado de um amplo processo político: a Constituição Federal. Vê-se que o problema, então, precede. Pois a Constituição Federal garante a educação como direito social.
Pois bem, feita essa breve retomada de uma dimensão do complexo processo de mobilização e greve estudantil de 2007, passemos aos dias de hoje.
No último dia nove, a USP virou palco de confronto escancarado, com direito a balas de borracha e bombas de efeito moral atiradas aos estudantes, pela Polícia Militar. Estudantes, funcionários e professores da Universidade dirigiam-se ao portão principal do campus do Butantã, em São Paulo, numa manifestação conjunta cujas principais reivindicações eram a retirada da Polícia Militar do campus e o fim do mandato da reitora Suely Villela. Alguns dias antes da manifestação, com funcionários e estudantes da Universidade já em greve, a USP amanhecera com cerca de cem viaturas da PM instaladas em diversos institutos e faculdades.
À diferença da época da ditadura, hoje, a polícia militar não tem permissão para entrar na universidade, a não ser quando tem sua presença requisitada. E a reitoria da USP requisitou. Se hoje a polícia não é permitida no campus, é porque já servira a fins de coerção, constrangendo estudantes, funcionários e professores que ousassem discutir o regime ou a repressão da época ditatorial. Em 19 de fevereiro deste ano, a Polícia Federal apreendeu os equipamentos da rádio livre que funciona na caixa d’água da Unicamp, a Rádio Muda. O argumento para legitimidade de tal apreensão? Um mandado judicial de 2007, que insiste em acusar a rádio de ilegal. Também neste ano foi apreendido pela polícia, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, um computador no qual funcionava um servidor livre que mantinha pesquisas em andamento. Sabemos a função coercitiva da polícia, como braço do Estado, que detém o monopólio da violência legítima. A PM é, então, o sujeito que detém o monopólio da violência legítima. Entretanto, quem define o que é violência legítima?
Não é legítimo (e aqui recorro novamente à Constituição Federal) que estudantes se formem no Ensino Médio sem perspectivas de continuar seus estudos superiores. Não é legítimo que o capital privado possa ditar rumos de pesquisas científicas nas Universidades. Não é legítimo que estudantes sejam agredidos, em espaço público, por ousarem discordar da privatização posta em curso nas Universidade Públicas, e se parece legítimo que o governo estadual opte por expandir vagas no ensino superior através do projeto do Ensino à Distância, não é legítima a ausência de possibilidade de escolha entre o ensino virtual e o presencial a que estão condenados os futuros estudantes da Universidade Virtual do Estado de São Paulo – que em si também não é legítima, enquanto a) não prevê “o princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”, conforme consta no artigo 207 de nossa Constituição, e b) é criada a partir de um decreto, que evidencia a indisposição governamental em construir um diálogo com a comunidade universitária.
No Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, estudantes, funcionários e professores estão em greve. Além da solidariedade à comunidade universitária da USP e do repúdio à presença da Polícia Militar no campus, a bandeira específica da greve é a contratação de professores. Houve redução de quase 50% do quadro de docentes, de dez anos pra cá, enquanto o número de estudantes cresceu. Sobrecarrega-se o professor, que, se quiser continuar com sua pesquisa – que não recebe capital privado por não ser de interesse imediato do mercado –, não pode se dedicar à formação dos estudantes. Os problemas de infra-estrutura também são alarmantes: a biblioteca, em reforma, foi inundada num dia de chuva forte, e correu-se o risco de perder parte de um riquíssimo acervo.
A greve acaba por ser o instrumento historicamente utilizado para deixar claro o posicionamento dos que contestam o status quo. Nesse momento, o desejo é chamar a atenção da população ao projeto político em curso na educação. Mobilizamo-nos e paramos nossa produção intelectual para nos dedicarmos a pensar sobre o projeto político privatista da educação e manifestar nosso descontentamento com esse tipo de Universidade. E quando a polícia militar é requerida na Universidade, e ouvimos, de outro lado, que é inadmissível a presença da polícia no campus, é hora de questionar, também, se é admissível a presença da polícia em outras manifestações de outros movimentos sociais. No centro da cidade de São Paulo, por exemplo, são muitos os pedidos de reintegração de posse de imóveis públicos ou privados, outrora ociosos e então ocupados, que são processados com a ação truculenta da polícia militar – muitas vezes envolvendo prisões e mortes de militantes. Esses imóveis são, também eles, pontos de ilegitimidade, se vistos sob o viés da Constituição, pois descumprem a função social da propriedade; e quando a reintegração de posse é cumprida, vê-se aí outra ação ilegítima: veda-se o direito à cidade, discutido e concretizado, em lei, no Estatuto da Cidade. É a polícia militar atuando na criminalização dos movimentos sociais, e fazendo uso de sua ‘violência legítima’. Legitimidade para quê(m)?
Autonomia universitária. Essa foi uma das expressões mais utilizadas em 2007, entre estudantes, funcionários e professores das universidades estaduais paulistas. Em primeiro de janeiro daquele ano, o governador José Serra lançou uma série de decretos que restringiam a autonomia administrativa e gerencial da Universidade sobre seus recursos financeiros; desrespeitavam o ensino, a pesquisa e a extensão como o tripé da Universidade pública; e convergiam com o projeto político para o ensino que já há muito está sendo colocado em curso pelos governadores que se sucedem no mandato do Estado de São Paulo.
Esse projeto político visa, como a agenda política mais ampla do governo federal, diminuir os gastos públicos com os direitos garantidos por lei na Constituição federal de 1988. Na prática, transforma-se a educação em serviço vendável, assim como se ignora a autonomia científica e de pesquisa: quem passa a trazer mais verbas para a Universidade são as empresas, com seu capital privado e seu interesse de mercado. E são elas, portanto, que passam a ditar quais são as prioridades nas pesquisas. Se, por um lado, a Universidade pública deveria servir à sociedade e reverter benefícios sociais, por outro, é justamente por não estar descolada da realidade social que os produtos da Universidade voltam-se para uma pequena parcela da sociedade. A pequena parcela que tem acesso à Universidade, que financia suas pesquisas e que se insere no jogo do mercado.
Foi para marcar sua desaprovação à essa política posta em curso, pelos governos e reitorias, para questionar que tipo de Universidade queremos, para defender a autonomia universitária e o amplo acesso à Universidade por parte da população, e por outros motivos que se desdobram desses, que os estudantes da USP ocuparam a reitoria, os da Unicamp, a Diretoria Acadêmica, e os da Unesp, reitorias e salas de aula, no ano de 2007. E a mídia noticiou, e as pessoas comentaram, e discutiu-se política para a educação em salas de aula, em salas de jantar, em bares.
A desocupação dos prédios públicos aconteceu quando os estudantes se viram enfraquecidos pela mídia, que insistia em caracterizá-los como vândalos e criminosos. A estratégia do governo estadual foi expelir um Decreto Declaratório, assegurando, nos termos da lei, a autonomia das Universidades. Não satisfeitos, mas acuados, estudantes deixaram os prédios públicos, sob ação da polícia. Na presença da tropa de choque, alguns estudantes da Unesp foram presos.
O movimento reivindicatório universitário ergueu-se com os decretos de primeiro de janeiro, fortaleceu-se ao longo do semestre e enfraqueceu com o Decreto Declaratório. Não há como negar o peso da dimensão legal no processo, nem perceber, então, o poder da lei em escamotear projetos políticos: a autonomia universitária não começou a ser ameaçada com aqueles decretos. Desde o momento em que capital privado passa a financiar pesquisas universitárias, a autonomia de pesquisa fica comprometida. Se, por um lado, as leis não bastam como garantia de direitos – pois estão na Constituição, mas não são garantidos na prática, direitos básicos, como educação e moradia –, por outro, o fato de estarem na Constituição torna-se argumento poderosíssimo, mobilizado pelos movimentos sociais para adquirirem legitimidade e, com isso, apoio da população que muito se ampara nos ‘termos da lei’.
Proponho, então, uma retrospectiva para arrematar o argumento: a contestação do movimento universitário (principalmente, estudantil) à política para a educação e o desejo de defesa da autonomia universitária teve como estopim uma medida legal que selava e expressava uma política em andamento. Essa política em andamento, porém, não condiz com o que sela e expressa, legalmente, o resultado de um amplo processo político: a Constituição Federal. Vê-se que o problema, então, precede. Pois a Constituição Federal garante a educação como direito social.
Pois bem, feita essa breve retomada de uma dimensão do complexo processo de mobilização e greve estudantil de 2007, passemos aos dias de hoje.
No último dia nove, a USP virou palco de confronto escancarado, com direito a balas de borracha e bombas de efeito moral atiradas aos estudantes, pela Polícia Militar. Estudantes, funcionários e professores da Universidade dirigiam-se ao portão principal do campus do Butantã, em São Paulo, numa manifestação conjunta cujas principais reivindicações eram a retirada da Polícia Militar do campus e o fim do mandato da reitora Suely Villela. Alguns dias antes da manifestação, com funcionários e estudantes da Universidade já em greve, a USP amanhecera com cerca de cem viaturas da PM instaladas em diversos institutos e faculdades.
À diferença da época da ditadura, hoje, a polícia militar não tem permissão para entrar na universidade, a não ser quando tem sua presença requisitada. E a reitoria da USP requisitou. Se hoje a polícia não é permitida no campus, é porque já servira a fins de coerção, constrangendo estudantes, funcionários e professores que ousassem discutir o regime ou a repressão da época ditatorial. Em 19 de fevereiro deste ano, a Polícia Federal apreendeu os equipamentos da rádio livre que funciona na caixa d’água da Unicamp, a Rádio Muda. O argumento para legitimidade de tal apreensão? Um mandado judicial de 2007, que insiste em acusar a rádio de ilegal. Também neste ano foi apreendido pela polícia, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, um computador no qual funcionava um servidor livre que mantinha pesquisas em andamento. Sabemos a função coercitiva da polícia, como braço do Estado, que detém o monopólio da violência legítima. A PM é, então, o sujeito que detém o monopólio da violência legítima. Entretanto, quem define o que é violência legítima?
Não é legítimo (e aqui recorro novamente à Constituição Federal) que estudantes se formem no Ensino Médio sem perspectivas de continuar seus estudos superiores. Não é legítimo que o capital privado possa ditar rumos de pesquisas científicas nas Universidades. Não é legítimo que estudantes sejam agredidos, em espaço público, por ousarem discordar da privatização posta em curso nas Universidade Públicas, e se parece legítimo que o governo estadual opte por expandir vagas no ensino superior através do projeto do Ensino à Distância, não é legítima a ausência de possibilidade de escolha entre o ensino virtual e o presencial a que estão condenados os futuros estudantes da Universidade Virtual do Estado de São Paulo – que em si também não é legítima, enquanto a) não prevê “o princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”, conforme consta no artigo 207 de nossa Constituição, e b) é criada a partir de um decreto, que evidencia a indisposição governamental em construir um diálogo com a comunidade universitária.
No Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, estudantes, funcionários e professores estão em greve. Além da solidariedade à comunidade universitária da USP e do repúdio à presença da Polícia Militar no campus, a bandeira específica da greve é a contratação de professores. Houve redução de quase 50% do quadro de docentes, de dez anos pra cá, enquanto o número de estudantes cresceu. Sobrecarrega-se o professor, que, se quiser continuar com sua pesquisa – que não recebe capital privado por não ser de interesse imediato do mercado –, não pode se dedicar à formação dos estudantes. Os problemas de infra-estrutura também são alarmantes: a biblioteca, em reforma, foi inundada num dia de chuva forte, e correu-se o risco de perder parte de um riquíssimo acervo.
A greve acaba por ser o instrumento historicamente utilizado para deixar claro o posicionamento dos que contestam o status quo. Nesse momento, o desejo é chamar a atenção da população ao projeto político em curso na educação. Mobilizamo-nos e paramos nossa produção intelectual para nos dedicarmos a pensar sobre o projeto político privatista da educação e manifestar nosso descontentamento com esse tipo de Universidade. E quando a polícia militar é requerida na Universidade, e ouvimos, de outro lado, que é inadmissível a presença da polícia no campus, é hora de questionar, também, se é admissível a presença da polícia em outras manifestações de outros movimentos sociais. No centro da cidade de São Paulo, por exemplo, são muitos os pedidos de reintegração de posse de imóveis públicos ou privados, outrora ociosos e então ocupados, que são processados com a ação truculenta da polícia militar – muitas vezes envolvendo prisões e mortes de militantes. Esses imóveis são, também eles, pontos de ilegitimidade, se vistos sob o viés da Constituição, pois descumprem a função social da propriedade; e quando a reintegração de posse é cumprida, vê-se aí outra ação ilegítima: veda-se o direito à cidade, discutido e concretizado, em lei, no Estatuto da Cidade. É a polícia militar atuando na criminalização dos movimentos sociais, e fazendo uso de sua ‘violência legítima’. Legitimidade para quê(m)?
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