Thursday, January 08, 2009

(Fragmento)

Porque há a inação, mas há também a ação. Há o fazer bonito, a história enlameia os dedos e a gente brinca de grudar a desgrudar. Lembro-me de um ocaso no sítio. Tinha os olhos vermelhos de tanto chorar a vida sofrida do menino do livro que peguei, escondida, da estante da vó. Devia eu ter meus dez anos. Subi a escadaria da casa, que era tão grande no meu sentimento, subi a escadaria e entrei no último cômodo. Era o quarto de tia Bá, lembro da coleção de bonecas que me metiam medo. Do cheio dos jornais empilhados, alguns recortes colados no armário, hoje entenderia o vigor daquilo tudo. Não era bagunça nem enfeite, era sentido de vida, expressão de luta e crença. Ardia. Ardiam meus olhos quando lia da vida do menino, das peraltices, da infância espancada e das vozes caladas, e não sabia o quanto disso ainda subsistia ao meu redor, naquelas colagens no armário. Mas gostava de ficar no quarto, era o meu favorito, e apesar dos olhos e sorrisos estáticos das bonecas, eu permanecia, e até cerrava os olhos. Depois desci, comi bolo com refrigerante na copa, e eu queria tanto abraçar e beijar a minha vó, e dizer a ela o quanto eu a amava, que os dias de sofrimento eu queria tirar dela, todos os dias de sofrimento eu queria expurgá-los do corpo e da memória da vó, a vó que era tão boa e me dava sempre meio comprimido de vitamina C quando eu queria, não precisava ficar doente, não, porque era bom prevenir. A vó também cuidou dos meus canarinhos, e eu não disse isso pra ela, mas nem fiquei muito triste quando um deles morreu, porque eu sabia que ela tinha cuidado deles. Acho que ela ficou mais triste do que eu, mas então eu senti mais minha tristeza, porque quando a gente sente tristeza junto até que é bom, até. E o fingimento vira verdade, porque a vontade de sentir junto é tão profunda que faz do inventado, real.

E qual não é real inventado? Como hoje, quando acordei num susto, com um sussurro ‘se cobre’, e meu coração acelerou e eu gritei de susto, mas me cobri e descobri que o susto fora acalanto. Acalanto era a forma dos cabelos e da silhueta toda que me alertou para o possível frio.

É a naturalidade de alguns encontros anulam potenciais enfrentamentos. O consciente ou historicizar catalisa potenciais tensões. Historiar é misturar criatividade e experiência, e potencializar enfrentamentos e deslumbres, num fluxo que é todo-narrativa. Assim, o passado chôro pela infância sofrida do menino se entrelaça com o sussurro de acalanto, e na não-sobreposição existem os interstícios, que se unem na minha memória e na história contada para meus netos no porvir.

2 comments:

Anonymous said...

Faz a gente sentir saudade de muitas coisas. Várias que nem aconteceram. Você sabe explicar o porque? Todo esse "que" de sonho.

Sydnei Melo said...

Faz eu lembrar do passado bonito que vivia na casa da vó, comendo chocolate da mercearia e correndo na quadra de areia do pq Tom Jobim.

Mistura com os problemas, e traz um pouco de esperança. ^^

Bjos!