Saturday, March 24, 2007

Sobre o ser e o estar

"Neste instante-já estou envolvida por um vagueante desejo difuso de maravilhamento e milhares de reflexos do sol na água que corre da bica na relva de um jardim todo maduro de perfumes, jardim e sombras que invento já e agora e que são o meio concreto de falar neste meu instante de vida. Meu estado é o de jardim com água correndo. Descrevendo-o tento misturar palavras para que o tempo se faça. O que te digo deve ser lido rapidamente como quando se olha."
Clarice Lispector, "Água viva"


O verbo ser não existe em tupi. Talvez porque eles tenham consciência da pretensão que o verbo exprime e, ao mesmo tempo, de sua comodidade. O que é, é. Permanentemente. O verbo ser expressa uma certeza, necessária a uma certa serenidade – ainda que aparente e ilusória – buscada pelo ser humano na nossa sociedade ocidental capitalista, onde definições são procuradas e distribuídas. Entretanto, o ser é pautado pelo ter: o que se pode consumir é aquilo que define o ser, aparentemente para a vida toda – que acaba por tornar-se um acúmulo de definições vitalícias que se superpõem mas não necessariamente se substituem.

Na nossa gramática, o verbo ser define as frases subordinativas. Ele compõe, essencialmente, a oração principal. Assim, exprime-se uma lógica hierarquizada, na qual o ser exige um predicado e, no momento em que esse predicado é definido, a limitação pautada por ele é gigante. No momento em que se passa a ser, deixa-se de ser, também, o que outrora poderia tornar-se. Na vida social, deixa de ser verbo de ligação para ser verbo intransitivo.

Mas se o verbo ser não existe em tupi, é porque a existência não é pautada por definições permanentes e excludentes. Expressa-se não a essência das coisas, mas o seu estado: o uso crucial e comum é o do verbo estar. As situações parecem se caracterizar como mais flexíveis e passíveis de adjetivações flutuantes. Não se é; está-se. O estar passa a definir momentos, talvez com maior relatividade de classificações e sem receios de atitudes das quais não se possa desprender ou arrepender-se.

Se na nossa sociedade, percebe-se, o ser é definido pelo ter, e este nos define essencial e imutavelmente, há que se lutar contra esses tipos de aprisionamentos e defender uma sociedade na qual o ser seja flutuante e não deposite em si tanta responsabilidade. Uma sociedade na qual o estar assuma a intransitividade. Onde as pessoas não sejam definidas pelo que possuem; onde as pessoas não sejam definidas, sejam apenas sentidas em seus diferentes estados de estar. Onde o verbo ser conste apenas no dicionário, com explicações ininteligíveis e impossíveis de serem compreendidas, numa sociedade onde não se é. Está-se.

7 comments:

Gustavo Barcamor said...

Texto maravilhoso...

Mas acho que o "ser" existe sim.

Ele é o nosso ponto de partida, e o nosso ponto final (se é que pode-se dizer assim). E estamos muitíssimo mais próximos do primeiro que do segundo. Tudo que há entre ambos é o "estar", mas o "ser" permanece ainda que tão profundo e quase intocável.

Talvez negar isso seja contradizer a própria existência.

Acho que compreender nosso mundo de "estados" é essencial, até revolucionário, mas a outra metade é procurar a proximidade com o "ser", ao menos sentir de leve o que pode, talvez, ser aquilo que sempre foi, é, e será.

Se procurarmos bem, perceberemos que em muitas ocasiões de nossas vidas tivemos o vislumbre dele, e automaticamente virá-nos a impressão de que foram como o milagre de uma borboleta e não de um incêndio sensitivo.

Beijo, Star.

Anonymous said...

Não acho o ser excludente. Considero-o até o contrário. O ser adiciona, afinal nunca se é só uma coisa, a única coisa que sempre somos somos nós mesmos e podemos ser "isso" sem deixar de ser "aquilo". O ser não é lógico, ele simplesmente é.
Complementando Barcamor, é como "In My Life" e "Hey Jude", são completamente diferentes, mas ambas fazem sentido na frase "são Beatles".

Anonymous said...

as pessoas são, e estão... quem sabe como se estará ou será?

Anonymous said...

Dica: Paulo Freire!

Ótimo texto!
Beijos!

Anonymous said...

Sociólogo: É o capitalismo que mina esse homem destinado a ser e nunca estar. Embora a aceleração do tempo e o excesso de produção nos obrigue a um estado quase constante de atualização.
Lingüista: Interessante você dizer que o Tupi não tem o verbo ser. Porque no Inglês e no Alemão há apenas um verbo (be e sein, respectivamente) para ser e estar. Curioso não?
Literato: É o questionamento mais famoso da história, não? O ser ou não ser, que em minha modesta opinião deveria ser estar ou não estar.
Filosofo: O ser é a essência do homem.
Tomaz: Estamos falando da mesma coisa Teh? De Ser e Estar? Muito bonito o texto da barcamor e devo concordar em alguns pontos. Mas olha, não culpe o Capitalismo por tudo, está bem? Se aceitasse meus convites para filmes podíamos conversar daquele jeito em que os dois terminam sem entender os rumos que a conversa tomou, o que concluímos, mas de certa forma aliviados... Topa um café, guria?
Ah... quase ia esquecendo. Cadê a poesia? Eu me perco nos meus sonhos e você na sua sociologia; vamos escrever vai criança...

Muuitos beijos terníssimos, querida. Tenha bom feriado (blarg, peixe..)

Zé Ricardo M. said...

Texto sensacional.

Sou bastante cartesiano nesse sentido. Talvez até sejamos, talvez até exista algo que sempre é, mas é muito difícil precisar exatamente o que.

No mais, creio que a questão de como vemos o ser, para nós ocidentais, deriva mais do cristianismo do que do próprio capitalismo. Mesmo porque existe capitalismo na Ásia. E, ao menos em alguns lugares, eles continuam com uma visão muito peculiar sobre ser e estar (visão esta pela qual tenho um certo carinho).

beijo

Anonymous said...

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