E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam estar
por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque,
um batuque com a pureza de meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui.
(Gilberto Gil)
Acabo de assistir a um vídeo que mostra a brutalidade a ação arbitrária da polícia norte-americana. Um estudante, ao fazer uma fala durante um evento com a presença do senador John Kerry, é interrompido pela polícia, agredido pela polícia e leva um choque elétrico da polícia. O porquê da interrupção? Segundo o comentário de alguém que assistiu ao vídeo e quis deixar sua opinião aos internautas:
This is hilarious. It's hilarious because people actually see this as police brutality. It isn't. It's also hilarious because the dumbass kept asking "what did I do? What did I do?" Let me enlighten you then dumbass:
Não sei dizer quais foram as perguntas que o estudante fez, mas num país que se vangloria de sua democracia pluralista, das iguais oportunidades que dá a todos e que assegura a todos os cidadãos, em sua Constituição, a “busca pela felicidade”, é possível que hajam perguntas que não possam ser feitas?
Ah, sim, é o mesmo país que comanda invasões em outros países alegando levar a tocha dourada e flamejante da democracia, enquanto seus soldados estupram mulheres e crianças na linha de fogo criada no Iraque. É o mesmo país que diz “lutar contra o terrorismo” e barra a entrada de muçulmanos em seus aeroportos. E barra mexicanos e brasileiros em suas fronteiras. O mesmo país que teve ônibus em que brancos se sentavam na frente e negros, atrás.
É, fundamentalmente, o país que se vangloria de respeitar, esticar e promover as liberdades individuais para seus cidadãos. Seus cidadãos? Aqueles brancos ricos que trabalhavam no World Trade Center e que também tiveram suas famílias destruídas no que chamaram de “ato terrorista de 11 de setembro”? Minimamente, a política norte-americana não consegue mais conter e sufocar os absurdos, e as desumanidades; a contradição entre o capital (a lógica do capital) e a vida humana extravasa os limites que – sendo otimista – qualquer chefe de Estado poderia prever.
Especulando. A polícia poderia alegar “perturbação da ordem” ou “desrespeito à nação”. “Nação”, este conceito vazio, cuja alegação de defesa serve para apaziguar e eufemizar violências e crimes cometidos inclusive à luz do dia numa universidade bem-conceituada do país. Lembro o recente massacre ocorrido recentemente numa universidade tecnológica norte-americana, também, quando um estudante atirou e matou vários colegas e depois também se matou.
Não podemos culpar este estudante, tampouco os policiais arbitrários. Tampouco a “burguesia” ou os “filhinhos de papai”. Fato é que nos é dada uma realidade imediata, na qual as relações entre pessoas são de plástico e tão “coisais” como a relação entre um controle remoto e a televisão. Inversamente, as coisas passam a ter vida própria: o carro novo nos dá alegria, o CD de jazz nos dá prazer. Estamos todos – trabalhadores, burgueses, classe média, operário, capitalista, funcionário público, estudante; utilize a nomenclatura e a categorização que quiser – submetidos a essa lógica de coisificar relações, tratá-las como coisas e nos subordinarmos às mercadorias. Cada um de nós, porém, apreende a realidade da maneira como ela nos é colocada. É como se existisse, objetivamente, uma só realidade; mas as percepções dela variassem de acordo com a localização da pessoa na estrutura social, ou na rede de relações, ou na esfera da produção, ou no papel religioso que essa pessoa possui, enfim. “A polícia”, como categoria social, cumpre sua parte no processo muito mais amplo de subordinar à idéia vazia de nação e à violência, a vida humana.
No país que lidera a consolidação do capitalismo global, não é difícil esperar uma atitude dessas. Mas que choca – com o perdão do trocadilho –, choca.