Tuesday, September 25, 2007

Choque

Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam estar
por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque,
um batuque com a pureza de meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui.
(Gilberto Gil)


Acabo de assistir a um vídeo que mostra a brutalidade a ação arbitrária da polícia norte-americana. Um estudante, ao fazer uma fala durante um evento com a presença do senador John Kerry, é interrompido pela polícia, agredido pela polícia e leva um choque elétrico da polícia. O porquê da interrupção? Segundo o comentário de alguém que assistiu ao vídeo e quis deixar sua opinião aos internautas:

This is hilarious. It's hilarious because people actually see this as police brutality. It isn't. It's also hilarious because the dumbass kept asking "what did I do? What did I do?" Let me enlighten you then dumbass:
You asked too many questions, especially the ones you're not supposed to ask, you're resisring arrest, you charged a cop afterwards and said it was police brutality when you got tazed?

Não sei dizer quais foram as perguntas que o estudante fez, mas num país que se vangloria de sua democracia pluralista, das iguais oportunidades que dá a todos e que assegura a todos os cidadãos, em sua Constituição, a “busca pela felicidade”, é possível que hajam perguntas que não possam ser feitas?

Ah, sim, é o mesmo país que comanda invasões em outros países alegando levar a tocha dourada e flamejante da democracia, enquanto seus soldados estupram mulheres e crianças na linha de fogo criada no Iraque. É o mesmo país que diz “lutar contra o terrorismo” e barra a entrada de muçulmanos em seus aeroportos. E barra mexicanos e brasileiros em suas fronteiras. O mesmo país que teve ônibus em que brancos se sentavam na frente e negros, atrás.

É, fundamentalmente, o país que se vangloria de respeitar, esticar e promover as liberdades individuais para seus cidadãos. Seus cidadãos? Aqueles brancos ricos que trabalhavam no World Trade Center e que também tiveram suas famílias destruídas no que chamaram de “ato terrorista de 11 de setembro”? Minimamente, a política norte-americana não consegue mais conter e sufocar os absurdos, e as desumanidades; a contradição entre o capital (a lógica do capital) e a vida humana extravasa os limites que – sendo otimista – qualquer chefe de Estado poderia prever.

Especulando. A polícia poderia alegar “perturbação da ordem” ou “desrespeito à nação”. “Nação”, este conceito vazio, cuja alegação de defesa serve para apaziguar e eufemizar violências e crimes cometidos inclusive à luz do dia numa universidade bem-conceituada do país. Lembro o recente massacre ocorrido recentemente numa universidade tecnológica norte-americana, também, quando um estudante atirou e matou vários colegas e depois também se matou.

Não podemos culpar este estudante, tampouco os policiais arbitrários. Tampouco a “burguesia” ou os “filhinhos de papai”. Fato é que nos é dada uma realidade imediata, na qual as relações entre pessoas são de plástico e tão “coisais” como a relação entre um controle remoto e a televisão. Inversamente, as coisas passam a ter vida própria: o carro novo nos dá alegria, o CD de jazz nos dá prazer. Estamos todos – trabalhadores, burgueses, classe média, operário, capitalista, funcionário público, estudante; utilize a nomenclatura e a categorização que quiser – submetidos a essa lógica de coisificar relações, tratá-las como coisas e nos subordinarmos às mercadorias. Cada um de nós, porém, apreende a realidade da maneira como ela nos é colocada. É como se existisse, objetivamente, uma só realidade; mas as percepções dela variassem de acordo com a localização da pessoa na estrutura social, ou na rede de relações, ou na esfera da produção, ou no papel religioso que essa pessoa possui, enfim. “A polícia”, como categoria social, cumpre sua parte no processo muito mais amplo de subordinar à idéia vazia de nação e à violência, a vida humana.

No país que lidera a consolidação do capitalismo global, não é difícil esperar uma atitude dessas. Mas que choca – com o perdão do trocadilho –, choca.

Monday, September 24, 2007

alô, Tião! 68?! Foste? Fui!

- Ô Tião!
- Oi?!
- Foste?
- Fui!
- Compraste?
- Comprei!
- Pagaste?
- Paguei!
- Me diz quanto foi.
- Foi quinhentos réis...

(Gilberto Gil)


A razão jamais dirigiu verdadeiramente a realidade social, mas hoje está tão completamente expurgada de quaisquer tendências ou preferências específicas que renunciou, por fim, até mesmo à tarefa de julgar as ações e o modo de vida do homem. Entregou-os à sanção suprema dos interesses em conflito aos quais nosso mundo parece estar realmente abandonado. (Horkheimer)


Escrevo estas linhas em setembro de 2007. Quase 40 anos desde o ano de 1968. Mil novecentos e sessenta e oito. Foi um ano de agitações, de questionamentos, de elaborações de idéias e de projeto de sociedade insaciáveis. No Brasil, quatro anos após o golpe militar, o ano de 68 foi despejar nas cabeças dos milicos que a ditadura e a repressão era o que os estudantes não queriam. Não estavam contra a ordem a priori, ou per si. Queriam viver, transformar, revolucionar, fazer história – sem esquecer seus mortos. Tomaram contato com Marcuse, Benjamin, Simone de Beauvoir, Sartre e Althusser. Politizava-se tudo: o sexo, as festas, o amor, a liberdade – tão almejada e reivindicada – e a própria política. A politização da política, a argumentação embasada, a experimentação de limites.


E não é porque os jovens foram os protagonistas desse ano – que, segundo o título do livro de Zuenir Ventura, é O ano que não terminou – que essa ânsia pela mudança deve ser considerada natural da juventude. O Brasil viveu o golpe de 1964 e a instauração de sua sui generis ditadura, que funcionou com o Congresso não-esfacelado (ou menos institucionalmente) durante um bom tempo; a cultura beat influenciava padrões comportamentais, bem como desafiava qualquer discurso moral o advento das mini-saias. E a influência do estrangeiro não se deu de mão única. A Tropicália[1] de Gil e Caetano buscou re-significar aquilo que vinha de outro continente e invaida a música brasileira – invasão que alguns chamavam de influência e outros, de imperialismo –, aliando às guitarras elétricas a sonoridade brasileira. A esquerda ortodoxa condenou tal atitude, e a falsa dicotomia criada entre a Bossa Nova e a Tropicália – reproduzindo, aliás, as taxações maniqueístas da época, comuns dentro da esquerda, como revolucionário ou reformista; povo organizado ou povo armado – contribuiu para a ira de Caetano, que foi vaiado ao entoar o que seria atribuído a posteriori como símbolo da geração de 68: o hino É proibido proibir. Sua resposta às vaias? “Se as idéias que vocês têm em política são as mesmas que vocês têm em estética, estamos feitos!”


E enquanto a esquerda se degladiava internamente (qualquer semelhança com o movimento estudantil de hoje é mera coincidência?), buscava a unidade contra aquilo que elegeram como inimigo comum: a ditadura e o imperialismo. À parte as diferentes interpretações e sutilezas (ou não) do imperialismo, como dito no parágrafo interior, faltavam coesão e estratégias conjuntas. Pensar a política como a arte da estratégia parecia ser pouco visceral, limitado demais para os estudantes, artistas e até mesmo intelectuais que, quando se tratavam de limites, preferiam a radicalidade à racionalidade – talvez o eclipse da razão, para usar o termo de Horkheimer, formasse também um maniqueísmo simplificado: as condições subjetivas para a revolução, a contemporaneidade de Fidel Castro, Mao e Che facilitavam a crença na vontade e a negligência – nem sempre velada – à razão. Ser radical é tomar as coisas pela raiz. O problema era a confusão de qual era e onde estava a raiz. A raiz era o povo brasileiro? O conceito vazio de nação? A cultura internacional era uma afronta às nossas raízes? Se “a raiz é o próprio homem”[2], há essencialmente um substrato comum que engendra a humanidade?


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Notas


[1] Assim como Augusto de Campos, prefiro falar em Tropicália no lugar de Tropicalismo. O sufixo “ismo” denota, das duas, uma: caráter pejorativo ou historicidade. E, apesar de não deixar de enxergar a Tropicália com historicidade, seus integrantes preferiam dizer que estavam fazendo nascer, conscientemente, o novo. Atribuir à Tropicália uma temporalidade é algo que eles não desejavam; limitar, ainda que no espaço-tempo, é confinar e restringir. (ver CAMPOS, Augusto de. É proibido proibir os baianos, 1968. In: CAMPOS, Augusto de, Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1978.)

[2] MARX, Karl.

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Eu devia escrever "continua", mas não sei, não. Talvez to be continued.

Saturday, September 15, 2007

Tá lá o corpo estendido no chão...

Não era uma madrugada tediosa de domingo, nem uma tarde odiosa de segunda-feira. Era uma tarde de sábado. Bucólica, crianças brincando na rua, adultos discutindo a política internacional no almoço, a vó botando panos quentes entre a tigela do pernil e as discussões calorosas entre gerações, a neta virando os olhos enquanto o vô dissertava sobre as utopias dessa juventude; discordavam e admiravam, nem sempre veladamente, as argumentações de um e outro.

Passa o tempo. Pode ter sido numa tarde de sábado, também, nem tão bucólica como aquelas. Caíram nas mãos da menina algumas palavras que lhe tiraram o chão. Fulana, poesia, marxismo, desejo, mar e violão.

O corpo estendido no chão tornou-se natural. Ela deixou, sem arrependimento, cair uma lágrima pelo sem-nome interrompido. Sequer atrapalhava o sábado. Não vislumbrava possibilidade de acreditar – dotada de racionalidade, emotividade e senso crítico, ainda – em qualquer coisa.




E não pendurei na parede do meu quarto o pôster do Che Guevara.

Thursday, September 13, 2007

You say you want a revolution...


Neurose do passado. Desmesura do mal praticado. Deslumbramento. Alienação da memória. Esquecimento, ressentimento, culpa. Elaborar o passado. Theodor Adorno, em seu texto O que significa elaborar o passado, faz uso de todos esses termos para, a partir da experiência do nazismo alemão, incursar-se na discussão sobre memória de um povo, sua construção identitária e urgência alemã de elaboração do passado. “O nazismo sobrevive”, diz ele, e cabe aqui uma conjunção explicativa, e não de oposição: sobrevive justamente porque dele não se fala. Não sucumbiu à própria morte.

Qual a relação entre o indizível e o ser humano? Uma relação de fascinação? Seria o indizível marcante nas relações humanas? Seria, por exemplo, o indizível destrinchado por poetas e resumido por leigos em ‘amor’? – embora não com menor intensidade, mas com restrita significação ao transbordar o indizível em palavras. Foucault, em sua História da sexualidade, pondera que o silencio sobre o sexo denunciava o pudor existente na sociedade sobre o assunto. Hoje, fala-se tanto em sexo, mas será esse alarde genuíno ou expressão de necessidade – pautada por tentativa e erro – de autoconvencimento da (reivindicada) naturalidade do sexo? Wittgenstein proclamava a linguagem como uma multiplicidade de usos e que celebrava a interação de significados. Significados dotados de atributos sociais, mas também de historicidade individual – já que cada um preenche, a partir de sua história de vida, as palavras e as suas relações com os homens e as coisas. Ao engendrar historicidade no indizível, este adquire significação mais universal em relação a um determinado grupo de pessoas. A história e a cultura tornam-se elementos-chave para a construção de identidade de um grupo social: fazer do indizível, assim, característica fortemente social e de coesão, e não mero atributo subjetivo.

A não-elaboração do passado contém não somente um caráter subjetivo de negação da tragédia a partir da desmesura do mal praticado. A negação do embrutecimento pessoal – brutal e, segundo Freud, fatal em determinadas experiências traumáticas –, por exemplo, é fator importante na não-elaboração de um passado individual. Mas um passado de proporções como o nazismo não é factível de ser analisado apenas sob o viés individual e pessoal. Adquire expressão social também, assim, a neurose do passado. (vide post anterior)


...well you know
we all want to change the world.

Saturday, September 08, 2007

parênteses - ou intervalo instrumental

Vem conquistar o que é seu
A gente sofre
A gente luta
Pois nossa palavra é sim.



Quem procura lembranças perdidas? Não sabe o que faz. O erro está na pergunta. Veja só.

Indiscutivelmente há muito de neurótico no que se refere ao passado: gestos de defesa onde não houve agressão; sentimentos profundos em situações que não os justificam; ausência de sentimentos em face de situações de maior gravidade; e não raro também a repressão do conhecido ou do semiconhecido.
Theodor Adorno.