Vivemos numa sociedade onde, apesar de marcados traços nacionalistas e forte propaganda nacional de enaltecer a auto-imagem do brasileiro, somos migrantes. Desde o simples trajeto diário casa-trabalho-casa até as excepcionais viagens de férias em família, ou viagens ao exterior para negócios; nos deslocamos para cumprir nossos papéis na sociedade – os quais se transformam de acordo com os locais de destino. Assim, o pai de família é o empresário bem-sucedido, o patrão autoritário e o sobrinho inconveniente. O trabalhador pobre é pai de família, empregado explorado e ajudante de pedreiro nas horas vagas. A filha mais velha é a neta favorita, a melhor aluna na escola e uma turista aspirante à jornalista nas praias do Nordeste, em janeiro.
Ironicamente, a geração dos anos 90 é tida como a “geração dos filhos de pais liberais” (liberais no sentido de não-autoritários, flexíveis e compreensivos), mas é a todo momento condicionada – por normas na maioria das vezes não-ditas, mas que pairam na sociedade. O espaço geográfico comporta peculiaridades, as quais nos impelem a cumprir os papéis exigidos por determinados ambientes e situações. Mas e quando estamos no ato de migrar? Os jovens, por exemplo, de classe média, alta e baixa, passam muito tempo no caminho de casa para a escola ou para o trabalho. Seja no ônibus, no carro ou à pé. Será que nesses momentos, são destituídos de qualquer papel social?
Alguns antropólogos caracterizam os meios de transporte e os caminhos por não-lugares. Mas e se passamos boa parte de nossos dias nesses não-lugares, passamos o dia sendo “ninguém”? Penso que não; afinal, se o espaço geográfico é importante, ele não é característica sine qua non para se formar uma identidade. Os diferentes papéis sociais que um indivíduo cumpre se entrelaçam e se co-determinam.
Além disso, se o não-lugar nos torna caminho diário e é incorporado à nossa rotina, passa a fazer parte de nossa vida e nos influencia e vice-versa. Quanto de nós pertence a um lugar, é reflexo do lugar, e vice-versa?
Entretanto, quando estamos na situação não-rotineira de migrantes, somos destituídos de laços consistentes; não estamos mais ligados ao lugar de onde saímos nem, ainda, ao destino. Experimentamos, assim, uma sensação de liberdade para criar quaisquer personas e assumir quaisquer papéis que se deseja. E nos atinge a problemática: “livre para fazer o quê?”.
Inseridos numa lógica segundo a qual tudo se transforma a tende à mercantilização e tem sua importância de acordo com sua finalidade – ainda que esta seja falseada para o hedonismo –, reproduzimos a lógica da busca pela necessidade de consumo da liberdade. Procuramos dar sentido; a liberdade não pode simplesmente ser condição para o homem ser homem, para o homem realizar plenamente suas faculdades, emancipar-se e ter consciência de si. Não. A liberdade é mais um bem consumido, e desprezado se não é nele encontrado sentido palpável, material e imediato. Não se pergunta mais o porquê da liberdade; mas para quê a liberdade. E essa inversão deve ser revertida, para a liberdade, enfim, poder constar em nosso ser.
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6 comments:
Eu n�o entendi algumas coisas no texto, mas acho que captei o sentido.
Gostei muito de suas coloca�es sobre a liberdade. Tem-se a falsa id�ia de que ela seria um presente para a t�o esperada (?) vaz�o a tudo o que gostar�amos de fazer e n�o podemos.
Mas quem reflete sobre o que est� por tr�s disso? Quem procura observar os desastres que sempre causaram esses jorros de "liberdade" acionados por alguns movimentos sociais... Os hippies, por exemplo. Queriam a paz (ficar doid�o e ser vagabundo) e o amor livre (fazer sexo com quem der na telha).
Nos dias atuais, onde "ser algu�m" � sin�nimo de "ter diploma", quem vai buscar a consci�ncia antes do senso de liberdade?
� como conta o psiquiatra Victor Frankel, que era judeu e foi levado pelos nazistas para um campo de concentra�o. Ficou l� por muito tempo, e quando tudo acabou e viram-se todos livres, atravessaram o port�o, felizes, andaram alguns metros, e depois voltaram para dentro do campo...
Acho que n�s todos, hoje, estamos andando estes metros, de certo modo. Muitos, j� j� quando perceberem que o que est�o fazendo n�o tem qualquer sentido, v�o voltar para dentro do campo e ficar esperando.
Espero que n�o.
Beijos.
Gostei.
No fundo a gente esta sempre no caminho - então somos sempre nada?
Acho que não; porque nesse caso o caminho não é mais caminho; ou é caminho pra sempre, o que faz dele um... lar, ou algo do tipo?
É bacana. Eu não sei como foram outras gerações. Mas parece uma linha evolutiva engraçada. Acho que a sociedade se tornou um bocado complexa, e as pessoas um tanto quanto flexíveis. Mas liberdade, respeito, esse tipo de coisa eu não sei. Acho que um bocado de pessoas estão inventando regras bem particulares, formando uma sociedade meio neurótica e insegura. Acho que depois daquele lance de "o sonho acabou", até o cinismo já perdeu espaço. Tá um negócio reprimido. Talvez agora a gente tenha espaço para um "Paz e Amor" mais sincero do que houve. Na marra, né?
Então, tem esse caso do andarilho que você falou - o lar de quem não tem terra natal é o caminho. Mas de forma geral tem poucos momentos que a gente não esta no caminho, na transformação... quando se esta caminhando, pode estar procurando chegar a algum lugar... mas quando se chega a este lugar, no instante seguinte já esta se buscando completar alguma tarefa nesse lugar... e após esta tarefa no instante seguinte outra... ainda que a tarefa seja descansar. Quando esta se estudando esta procurando achar alguma resposta... e quando se chega a ela no instante seguinte ao esclarecimento a resposta nos leva a outro questionamento, e outra busca... tirando esses breves instantes intermediarios, a gente esta sempre no caminho, na transformação... nesse caso, se enquanto estamos no caminho não temos nenhum papel social como fica?
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