Sunday, March 29, 2009

Relato de uma recente experiência católica

Há cerca de dois meses atrás, fiz uma promessa. Se desse certo, a penitência por mim proposta e que deveria, também por mim, ser cumprida, era ir à missa todos os domingos durante a quaresma, os quarenta dias que antecedem a páscoa – período, na doutrina cristã, de intensa introspecção e meditação acerca de sua vida, seus caminhos, seus pedaços e coerências, seus valores e ações.

Pois bem. O desejo vingou; tinha eu agora que fazer a minha parte do combinado.

Compareci e participei, no meu entendimento, de maneira bem ativa das missas: prestei atenção nas leituras e refleti sobre elas, bem como nos temidos sermões – as homilias, que, pra ser sincera, se pareciam intermináveis há dez anos atrás, hoje desejei que fossem mais longas, na esperança de alcançar profundidade –, ponderei sobre o tema da campanha da Fraternidade, arrisquei a entoar os cantos (alguns são os mesmos desde minha meninice, de quando fazia catequese). Já que ia dar uma de pagadora de promessas, que o momento servisse para reflexões pessoais sobre as minhas espiritualidades. Parecia fazer sentido atentar praquele mundo cristão, mais especificamente católico, com o qual eu tenho mantido uma relação oscilante, de afastamento – por discordâncias quanto a posturas na vida, valores e práticas – e aproximação – por desejo de fé – nos últimos anos. Fazia sentido mergulhar naquilo, e ver se podia ser algum lugar meu, também.

Acontece que a falta de profundidade nos sermões; as inexistentes problematizações acerca dos conceitos que compõem o lema da campanha da Fraternidade – a saber, paz, justiça e segurança pública –, as inexistentes respostas para minhas dúvidas tanto cerimoniais/rituais como cosmológicas/histórico-mitológicas e incongruências entre minha vida e algumas idéias genericamente denominadas como católicas, tudo isso me fez perceber que aquele lugar, o lugar da Igreja, não era meu. Não era meu e eu não desejava compartilhá-lo. O pagamento da promessa estava mesmo se transformando em sofrimento – elemento fundamental da vida terrena, segundo a doutrina cristã.

E então comecei a questionar o porquê da minha promessa. Ou melhor, o porquê da penitência elencada por mim ter sido comparecer a/participar da missa. Elaborei a seguinte hipótese: a penitência já estava imbricada do desejo, à época (re)aflorando, de reaproximação minha do universo espiritual, e a igreja e a missa foram os primeiros locus que me vieram à mente para empreender isso àquelas circunstâncias, inclusive porque desconhecia (e desconheço) outras espiritualidades que tenham mecanismos de troca como a promessa e sua penitência.

Além disso, a promessa já tinha sido feita, e a dádiva, obtida (ou a graça alcançada, como se diz), então eu não podia simplesmente abandonar a parte que me cabia no pacto aparentemente determinado exclusivamente por mim – afinal, eu é que propus a ida à missa durante os domingos da quaresma como penitência. Porque, uma vez tendo recorrido à estratégia/ao exercício da promessa como esperança ou acalanto, só cabia a mim olhar para esse evento de acordo com sua lógica interna. Não parece cabível desencanar de pagar a promessa porque a penitência não faz mais sentido; ela faz sentido justamente porque é penitência, ainda que como ação isolada seja esvaziada de sentido, pra mim. Em termos concretos: eu já teria parado de ir à missa aos domingos, não fosse para pagar a dita-cuja da promessa já feita.

Resta aproveitar o tempo que me resta de cumprimento da penitência para pensar qual pode ser o locus do meu contato mais íntimo e desenvolvimento das minhas espiritualidades. Tem uma conclusão bonita que posso tirar dessa história: que não me foi possível instrumentalizar a penitência (ainda que instrumentalizar, aqui, tivesse um sentido positivo e otimista: minha imersão individual no meu lado espiritual). Uma vez definida para cumprir a função que fez sentido dentro de uma lógica específica (a da estrutura/dádiva/dívida – promessa/graça/penitência) não me foi possível retirar um dos elementos (a penitência) dessa tríade pra realocá-lo num contexto em que ele, sozinho, deveria tornar-se sujeito/objeto de outra missão (minha incursão pela minha espiritualidade). Se isso desse certo, teria sido bonito, de qualquer, jeito. Não deu, então pelo menos teoricamente, continua sendo bonito; afinal de contas, sempre fui defensora ferrenha da não-separação entre semântica e pragmática, e da não-dissolução dos laços semânticos e pragmáticos entre elementos de uma determinada formaconteúdo de pensamentoação. É, no fim das contas, eu devo ser uma conservadora - pagã.

Thursday, March 19, 2009

pro dia nascer feliz

o banho frio no verão, desejo mais visceral. apressa que tá começando! sai no pinga-pinga, cabelo embaraçado, corre na elegância da toalha enrolada. ninguém duvida do bom-humor, ri alto e escancarado, a pele preta de cetim; eu colocava uma flor no cabelo, assinando embaixo de tanta prosa de mulher feliz.

(sambando na lama de sapato branco.)

Sambando na lama de sapato branco, glorioso
Um grande artista tem que dar o tom
Quase rodando, caindo de boca
A voz é rouca mas o mote é bom
Sambando na lama e causando frisson
 
(...)
Cantando e sambando na lama de sapato branco; glorioso
Um grande artista tem que dar lição
Quase rodando, caindo de boca
Mas com um pouco de imaginação
Sambando na lama sem tocar o chão
 
E o tal ditado, como é?
Festa acabada, músicos a pé
Músicos a pé, músicos a pé
Músicos a pé
 
Sambando na lama de sapato branco, glorioso
Um grande artista tem que fazer fé
Quase rodando, caindo de boca
Aba de touca, jura de mulher
Sambando na lama e passando o boné
 
(...)
Cantando e sambando na lama de sapato branco, glorioso
Um grande artista tem que dar o que tem e o que não tem
Tocando a bola no segundo tempo
Atrás de tempo, sempre tempo vem
Sambando na lama, amigo, e tudo bem
 
E o tal ditado, como é?
Festa acabada, músicos a pé
Músicos a pé, músicos a pé
Músicos a pé
 
Sambando na lama de sapato branco, glorioso
Um grande artista tem que estar feliz
Sambando na lama e salvando o verniz

Chico Buarque, Cantando no toró
Para tentar se livrar da acusação de homicídio, o advogado do austríaco disse que Fritzl não queria matar os filhos, mas "construir uma segunda família no porão de casa". Para isso, teria decorado o cativeiro com um papel de parede do Mickey para criar uma "atmosfera de lar".

http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u537210.shtml

Wednesday, March 18, 2009

"não esquecer que é tempo de morangos"

Chega mais perto, contempla as palavras. Suspende no entorno as vontades que alucinam. Gira leve, toca a flor. Pétala é olhar recém-nascido. Arrisca o toque, sustenta a proposta. Oscilação é charme real, tão reais a sutileza e a força. Palpita, sugere com afinco e verde-grama. O céu permite, observa. As nuvens loiras nem cochicham; seguem tranqüilas. O mundo segue, rápido, difuso, opaco. A translucidez é por nossa conta. O risco é quase suposto – mas não é. Aguça, cantarola, ternureia. Desfaz o nó esgarçado; enlaça com cuidado. Movimenta as mãos, um balé semi-cheio de floreios e passos marcados. Estanque, pousa as mãos, firmes-leves cataventos. Finda o dia, pinta a noite – irretocáveis borrões. Propõe o óbvio num sopro, e num suspiro atinge o ápice.

Dance me to your beauty with a burning violin 
Dance me through the panic 'til I'm gathered safely in 
Lift me like an olive branch and be my homeward dove 
 
Dance me to the end of love 
Dance me to the end of love 
 
Let me see your beauty when the witnesses are gone 
Let me feel you moving like they do in Babylon 
Show me slowly what I only know the limits of 
 
Dance me to the end of love 

Bob Dylan, mas a minha versão é da Madeleine Peyroux


Thursday, March 12, 2009

girassol confesso

e quando o crepúsculo dói nos ossos, a boca seca, o ar vermelho, meu coração ramifica - e quando isso? e quando a vontade retumba o passado, abafa as razões longínquas, e permite o devaneio? e quando o devaneio sincereia? meu corpo é molhado, a visão é turva, nada desanuvia, e quando a morada é ausente, e quando os passos são de vai-e-vem, mas nunca de ida nem volta? e quando o motor é falho, a engrenagem é gasta e os óculos, fora de moda? e quando é embalagem pra presente e olhar de rabo de olho no meio-fio, a lua alta, algumas cervejas ou um conhaque, uma ou outra proposta, a porta do motel? e quando a lua é vazia, meus cabelos não repousam, meu toque arranha? e o intervalo desarmônico. roupas no varal, e quando é sol sem tréguas, garrafa tombada, e quando a música desacompanha o movimento, e quando o ridículo é despercebido e minhas mãos batucam o vácuo?

Saturday, March 07, 2009

prelúdio (ou retardo)

se você pretende enrolar seus braços em minha nuca, e soltá-los tão displicente num quase-roçar minhas costas, o beijo até onde a luz alcança e não alcança, o desejo dos corpos grudados, de sentir as peles todas em contato, as águas brotam de trás dos olhos, se você pretende seu corpo no meu corpo no seu corpos nus e os enlaces, jantar café-da-manhã e o restante do vinho, sorrir dos cheiros percebidos na memória, a mais profunda entrega reconhecida, embevecida por recortes na parede e o sorriso que confirma tudo, se isso, ah, se isso, garanto que sim.

Wednesday, March 04, 2009

Repúdio à Folha de São Paulo

http://www.ipetitions.com/petition/solidariedadeabenevidesecomparat/index.html

Manifesto

Ante a viva lembrança da dura e permanente violência desencadeada peloregime militar de 1964, os abaixo-assinados manifestam seu mais firme eveemente repúdio à arbitrária e inverídica “revisão histórica” contida noeditorial da Folha de S. Paulo do dia 17 de fevereiro último. Ao denominar“ditabranda” o regime político vigente no Brasil de 1964 a 1985, a direçãoeditorial do jornal insulta e avilta a memória dos muitos brasileiros ebrasileiras que lutaram pela redemocratização do país. Perseguições,prisões iníquas, torturas, assassinatos, suicídios forjados e execuçõessumárias foram crimes corriqueiramente praticados pela ditadura militar noperíodo mais longo e sombrio da história política brasileira. Oestelionato semântico manifesto pelo neologismo “ditabranda” é, a rigor,uma fraudulenta revisão histórica forjada por uma minoria que sebeneficiou da suspensão das liberdades e direitos democráticos nopós-1964.Repudiamos, de forma igualmente firme e contundente, a “Nota de redação”,publicada pelo jornal em 20 de fevereiro (p. 3) em resposta às cartasenviadas à seção “Painel do Leitor” pelos professores Maria Victoria deMesquita Benevides e Fábio Konder Comparato. Sem razões ou argumentos, aFolha de S. Paulo perpetrou ataques ignominiosos, arbitrários eirresponsáveis à atuação desses dois combativos acadêmicos e intelectuaisbrasileiros. Assim, vimos manifestar-lhes nosso irrestrito apoio esolidariedade ante às insólitas críticas pessoais e políticas contidas nainfamante nota da direção editorial do jornal.Pela luta pertinaz e consequente em defesa dos direitos humanos, Maria Victoria Benevides e Fábio Konder Comparato merecem o reconhecimento e o respeito de todo o povo brasileiro.

Tem mais samba no encontro que na espera

E quando a memória encrustrada no corpo oscila entre a tonelada sobre os ombros e a leveza do sambar? Acontece o campo de visão ampliado, sensibilidade à flor da pele, mente desanuviada no embalo da harmonia, o corpo cedendo à marcação mais grave. Na reciprocidade que o tempo apresenta aos sedentos de encontro, o samba é anfitrião.

tem mais samba no encontro que na espera,
tem mais samba a maldade que a ferida
tem mais samba no porto que na vela
tem mais samba o perdão que a despedida
tem mais samba nas mãos do que nos olhos
tem mais samba no chão do que na lua
tem mais samba no homem que trabalha
tem mais samba no som que vem da rua
tem mais samba no peito de quem chora
tem mais samba no pranto de quem vê
que o bom samba não tem lugar nem hora
o coração de fora
samba sem querer

vem que passa
teu sofrer,
se todo mundo sambasse,
seria tão fácil viver


Vinicius de Moraes, Tem mais samba.