Thursday, April 22, 2010

da velocidade

há momentos em que eu preciso esperar. não sei o quê, não sei porquê, ou pra quê. mas esperar, que eu sei que. esperar um evento, um acontecimento. algum estímulo, de dentro ou de fora, para seguir caminho ou me deixar levar. às vezes espero na procrastinação: no silêncio de quando o álbum acaba; na vadiagem obcecada por rastros virtuais; no domingo que se alonga por toda a semana e pesa debaixo dos olhos. n'outras vezes, espero freneticamente: chacoalho as pernas sem perceber, num ambiente lotado qualquer; entorno copo atrás de copo de cerveja; arrisco um cigarro; desvio olhares, arrisco fechar os olhos e aguçar outros sentidos. gosto mesmo é de quando essa espera cede lugar a outros tempos - mas aí já é acontecimento. o nascer do sol, especialmente, funciona como interlúdio na espera, e então, quando vejo, é entre baixar a guarda, os óculos de sol e os ombros, um pouco mais, que até a espera virou elemento de sinfonia. o novo desafio é descobrir (desvelando, dirigindo e orquestrando) se o movimento é de valsa, marcha ou fuga. se a modulação do tema, se há, é mais alegre ou menos rápida; se a expansão melódica respeita o tom e o andamento; quão ousada é a invenção. é evidente que me questiono com freqüência sobre quais são as permutações impossíveis, e também com certa freqüência concluo versando variações sobre o mesmo tema. mas se é sobre tempo que falo aqui, aquieta meu coração a certeza das novidades.

para ler ouvindo: resposta ao tempo, de aldir blanc. na interpretação, claro, de nana caymmi.

Sunday, April 18, 2010

a boa solidão

a boa solidão é feita da luz mais bonita
luz de tarde de inverno que brinda qualquer passante
imerso em qualquer leitura
desvela perfis cotidianos
dessa boa e luminosa solidão brota delicadeza e respiração lenta
a boa solidão é matéria-prima para
estar no mundo
presente
consigo
ver beleza e encanto no ordinário.

(era para ter sido publicado com uma imagem de Anahi DeCanio, mas não consegui fazer o upload; dá pra ver aqui)

Friday, April 16, 2010

apenas

era pra ser só mais um copo de cerveja, o colarinho impecável e a espuma se erigindo e equilibrando elegantemente por sobre toda a borda do copo americano. uma marcha transpassada, tocada pelo pianista do andar de cima; um telegrama do marido preso pelos militares; o alívio de passar na prova de epidemiologia mereciam muitos copos de cerveja. mas a ânsia brotou, talvez de um corpo moreno despertando-lhe asco enquanto a tentava seduzir naquele ambiente claustrofobicamente ensurdecedor, talvez aqueles músculos enrijecidos atentaram contra qualquer conforto interno, e também ela toda passou a se contorcer.
não havia nada de escatológico nos seus movimentos, só o impelir-se adiante. vomitou, correu, despelou-se à navalha, tosou o cabelo. precisava desvencilhar-se do mundo, esvaziar-se de si e da sua história.
amanheceu.
havia toda a área externa daquela pensão barata para limpar. ela não podia se dar ao luxo de se deprimir e perder as forças, não. jogou um balde d'água para esparramar da maneira mais uniforme possível, ainda que aleatória, a espuma concentrada no chão. esfregava sem se lembrar do colarinho impecável do copo de cerveja. é assim que as coisas se dissipam, ou nem se permite que se condensem.

inspirado numa cena de 'assédio', filme lindo, lindo, lindo, de bernardo bertolucci.

Sunday, April 11, 2010

variações sobre o mesmo tema

quer à primeira vista, quer na lenta transformação da amizade virando-alguma-coisa-diferente-que-não-sei-bem-o-quê-é; na concretização mais romântica do platônico, com direito a jantar à luz de velas; no hedonismo embriagado do dionisíaco uma-noite-e-nada-mais: todo amor já nasce viciado.
pode ser meticulosamente arquitetado, como os dados ocos com peso de resina precisamente no centro do lado do número seis; como pode ser também o vício que se instaura aos poucos, da maconha à heroína, e vai nos consumindo até tornar embaçada a distinção entre sujeito e objeto de desejo. até dissimular quem escolhe, quem decide, quem consome, e o quê é consumido.
então a diferença fundamental, e que deixa toda história de amor bonita, reside justamente nos desenrolares: se o amor já nasce viciado, no mesmo instante em que nasce, contudo, já é único. pois os instantes que vão se sucedendo em cada história são instantes-já, como diz clarice lispector. irreversíveis, intangíveis, impossíveis de não-serem, ao passo que, por definição, são. é ao mesmo tempo um alento e uma qualidade: mais ou menos como dizer que, se todo amor nasce viciado, as possibilidades de vício são geridas pela verdade idiossincrática de cada pessoa, ou melhor, de cada uma das pessoas que compõe o par (ou trio, quarteto, quinteto...) amoroso. As possibilidades de vícios existem na proporção em que cada um já tem sua história e seu modo de contá-la. Na medida em que não existem impressões digitais idênticas, ou em que em cada gole de cerveja reside uma novidade, uma aflição.
Na medida em que cada dança pode ser sincopada ou lenta, e, para cada caracterização existem ainda (no mínimo) um novo par de possibilidades que se abre. a dança lenta apaixonada numa noite quente de verão seguida de beijos lascivos e roupas ao pé da cama, o telefonema da ex no dia seguinte quando há outros braços ao redor, um cigarro entre vestir o sutiã e o par de sandálias, um suspiro e a meia-volta arrependida (porque a gente sempre volta pro vício, ou ele pra nós; a ordem nem importa), por exemplo, é só uma possibilidade da combinação de todos os elementos passíveis de permutação (incluídos aí todos os imprevisíveis - a esmagadora maioria). delícia de vício.

por acaso

ele usava uma máscara branca e preta e vestia suspensórios, o que, junto com seu andar e meneios de cabeça que eu logo supus característicos, confiavam-lhe um ar algo entre o kitsch e o blasé. nada mal para um bloco numa cidade tão provinciana, pensei comigo. é claro que não nos beijamos ao som de 'máscara negra'; eu queria muito menos carnaval e mais folhetim. foi no 'ô ô ô ô' de aurora que nossos olhos se encontraram, e antes de qualquer ladainha sobre sinceridade, amanheci enredada em seus braços.

para ler ouvindo: 'folhetim', de chico buarque.

Friday, April 02, 2010

de livros, chuva e encontros

ontem estava na sala dos professores da escola onde funciona o cursinho popular do qual participo e, entre uma aula e outra, folheei um livro de roland barthes, 'o rumor da língua'. o livro é uma coletânea de pequenos artigos, e cheguei a ele através da indicação de uma admirável professora. a idéia era ler um artigo em que ele fala de benveniste, lingüista, para tentar entender um pouco mais do paradigma em que repousa a etnografia de jeanne favret-saada, uma antropóloga em cuja obra estou mergulhada nesses tempos.

mas um dos motivos pelos quais realmente gosto de pegar livros na biblioteca - e não simplesmente tirar xerox de um ou dois artigos ou capítulos selecionados pelo professor, cujas cópias ficam à espera dos estudantes, numa pasta no xerox - é porque folheá-los realmente me é muito prazeroso. folhear um livro é como observar um quadro de diversos ângulos, espreitar a construção - meticulosa ou não - da obra concreta que está em nossas mãos. e eis que, folheando o livro de barthes, caí justamente num artigo em que ele fala da escrita e, mais detidamente, da leitura. de como a leitura é o locus da perda de controle do escritor sobre o leitor. porque a leitura, ou ao menos um tipo de leitura, suscita, por vezes, outros pensamentos em cascata na cabeça do leitor.

e barthes chama essa leitura da leitura 'levantando a cabeça'. desafia: quem nunca leu 'levantando a cabeça'? é a leitura em que nos acometem pensamentos muitos, é a leitura ao mesmo tempo desrespeitosa (o termo é de barthes), pois interrompe o texto a toda hora, e faz conexões possivelmente inimagináveis ao escritor, e fiel, passional, pois é ao próprio texto que o leitor sempre retorna, se nutrindo dele, em movimento de vertigem - aproximação e autonomia (agora os termos são meus).

e li o trecho do ensaio apaixonante e apaixonado (barthes não economiza ao demonstrar seu amor pela literatura) para um amigo meu, também ali, na sala dos professores do cursinho, terminando de preparar sua aula - de redação. li o trecho sobre a leitura 'levantando a cabeça', e ele disse que certa vez ouviu ou leu, de alguém ou em algum lugar, sobre a biografia de hannah arendt.: ela lia 'levantando a cabeça' com freqüencia. dizque ela, durante a leitura, era acometida por intensos fluxos de pensamento e iluminação, e largava-se na cadeira, as costas curvadas para a trás, o pescoço também em curvatura, a cabeça olhando para o céu. e assim permanecia. até resolver empertigar-se na cadeira e escreverescreverescrever.

eu ouvia atenta, e esse meu amigo continuou. disse que, segundo alguma psicologia, fazemos o movimento de olhar para cima quando buscamos clareza sobre abstrações e, para baixo, quando o esforço é dar concretude a essas abstrações. ele fez uma comparação linda: a melancolia ou a introspecção que nos acomete em dias de chuva.

fiquei pensando sobre isso e, hoje, sexta-feira santa, chove. essa lembrança me é muito forte: toda sexta-feira santa chove. aqui em casa não comemos carne, e também não tem bacalhoada - na minha família, a bacalhoada sempre foi aos sábados, porque 'fazer bacalhoada em dia de penitência, reclusão, introspecção, é contradição demais', diz sempre minha mãe, quando nos lembra o motivo de não comer carne: sacrifício. sem esbanjar, sem comemorar, sem efusiva festança, que o sábado de aleluia está aí pra anunciar. pois é, sexta-feira santa. introspecção, recolhimento. e chove. o movimento? a condensação das abstrações, tão densas, tão densas, tão densas, que caem, quer vultosa quer serenamente em direção ao concreto - ou ao coração, se assim preferirem (eu prefiro) - da terra.

e não pára por aí: escorrem e tomam a forma que convém ou a forma possível? as gotas se fundem com o vento (me encanta, desde muito menina, observar os encontros das gotinhas no vidro do carro, o carro em movimento e elas se encontrando, eu ficava na torcida para escorrerem mais lentas, mais rápidas, fundirem-se, se desfundirem); acomodam-se nas superfícies que, num deslize de retidão, recebem a água que vem dos céus; infiltram-se em solos mais ou menos arenosos; percorrem longos caminhos até seu fim provisório: o encontro das águas. porque seu fim último não existe. não há finalidade nem final, e isso a gente aprende desde criança: é tudo ciclo.

Saudades, de Mia Couto

Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
sói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono

história de um futuro amor

semana passada, dormiu nos meus braços; na noite de antes de ontem, hesitei entre ficar e sair, agonizei, quase chorei. acabei adormecendo enlaçada.
entre o dia em que conheci sua expressão de entrega e o dia em que não me lembro mais de seu rosto em alegria compartilhada, mora meu coração exausto.
ontem percebi que me despedi com ternura, e saí sem olhar pra trás, numa lágrima fugidia.
são coisas do mundo, minha nêga. eu não posso explicar meus desencontros.

alguma ternura

não fosse, meu amigo, alguma ternura, embalada com cuidado e persistência num embrulho divino de quase natal, não fosse alguma ternura, querido, sei que teria rendido.

cedido, rendido à terra, no susto ao encontrar a palidez dos que amamos envolta em flores.
e são lágrimas, gritos, acordes ressonantes que me acordam nas madrugadas, são ainda tremores e emoções em qualquer toque à contrapêlo, no receio de qualquer coisa nova, bela, sincera, no receio de qualquer carinho que seja.
e são também entregas lascivas, a pele em brasa, rubi coração em relinchadas; são espaços-todos-ocupados nos corpos que se querem encontro d'ossos, em tempos sincopados por suspiros e rouquidão.

noite a noite, há ternura. há alguma ternura, vinda de não sei onde, num repouso de cansaço, num enlace de dedos, numa cúmplice aprovação.

e há tempo para esquecer, há tempo para render-se ao desenfreio da solidão.

e há o dia. há o despertar. há coragem de novo, e recompensas todas.
pelo céu, pelo seu, pelo meu e pelos nossos.