ontem estava na sala dos professores da escola onde funciona o cursinho popular do qual participo e, entre uma aula e outra, folheei um livro de roland barthes, 'o rumor da língua'. o livro é uma coletânea de pequenos artigos, e cheguei a ele através da indicação de uma admirável professora. a idéia era ler um artigo em que ele fala de benveniste, lingüista, para tentar entender um pouco mais do paradigma em que repousa a etnografia de jeanne favret-saada, uma antropóloga em cuja obra estou mergulhada nesses tempos.
mas um dos motivos pelos quais realmente gosto de pegar livros na biblioteca - e não simplesmente tirar xerox de um ou dois artigos ou capítulos selecionados pelo professor, cujas cópias ficam à espera dos estudantes, numa pasta no xerox - é porque folheá-los realmente me é muito prazeroso. folhear um livro é como observar um quadro de diversos ângulos, espreitar a construção - meticulosa ou não - da obra concreta que está em nossas mãos. e eis que, folheando o livro de barthes, caí justamente num artigo em que ele fala da escrita e, mais detidamente, da leitura. de como a leitura é o locus da perda de controle do escritor sobre o leitor. porque a leitura, ou ao menos um tipo de leitura, suscita, por vezes, outros pensamentos em cascata na cabeça do leitor.
e barthes chama essa leitura da leitura 'levantando a cabeça'. desafia: quem nunca leu 'levantando a cabeça'? é a leitura em que nos acometem pensamentos muitos, é a leitura ao mesmo tempo desrespeitosa (o termo é de barthes), pois interrompe o texto a toda hora, e faz conexões possivelmente inimagináveis ao escritor, e fiel, passional, pois é ao próprio texto que o leitor sempre retorna, se nutrindo dele, em movimento de vertigem - aproximação e autonomia (agora os termos são meus).
e li o trecho do ensaio apaixonante e apaixonado (barthes não economiza ao demonstrar seu amor pela literatura) para um amigo meu, também ali, na sala dos professores do cursinho, terminando de preparar sua aula - de redação. li o trecho sobre a leitura 'levantando a cabeça', e ele disse que certa vez ouviu ou leu, de alguém ou em algum lugar, sobre a biografia de hannah arendt.: ela lia 'levantando a cabeça' com freqüencia. dizque ela, durante a leitura, era acometida por intensos fluxos de pensamento e iluminação, e largava-se na cadeira, as costas curvadas para a trás, o pescoço também em curvatura, a cabeça olhando para o céu. e assim permanecia. até resolver empertigar-se na cadeira e escreverescreverescrever.
eu ouvia atenta, e esse meu amigo continuou. disse que, segundo alguma psicologia, fazemos o movimento de olhar para cima quando buscamos clareza sobre abstrações e, para baixo, quando o esforço é dar concretude a essas abstrações. ele fez uma comparação linda: a melancolia ou a introspecção que nos acomete em dias de chuva.
fiquei pensando sobre isso e, hoje, sexta-feira santa, chove. essa lembrança me é muito forte: toda sexta-feira santa chove. aqui em casa não comemos carne, e também não tem bacalhoada - na minha família, a bacalhoada sempre foi aos sábados, porque 'fazer bacalhoada em dia de penitência, reclusão, introspecção, é contradição demais', diz sempre minha mãe, quando nos lembra o motivo de não comer carne: sacrifício. sem esbanjar, sem comemorar, sem efusiva festança, que o sábado de aleluia está aí pra anunciar. pois é, sexta-feira santa. introspecção, recolhimento. e chove. o movimento? a condensação das abstrações, tão densas, tão densas, tão densas, que caem, quer vultosa quer serenamente em direção ao concreto - ou ao coração, se assim preferirem (eu prefiro) - da terra.
e não pára por aí: escorrem e tomam a forma que convém ou a forma possível? as gotas se fundem com o vento (me encanta, desde muito menina, observar os encontros das gotinhas no vidro do carro, o carro em movimento e elas se encontrando, eu ficava na torcida para escorrerem mais lentas, mais rápidas, fundirem-se, se desfundirem); acomodam-se nas superfícies que, num deslize de retidão, recebem a água que vem dos céus; infiltram-se em solos mais ou menos arenosos; percorrem longos caminhos até seu fim provisório: o encontro das águas. porque seu fim último não existe. não há finalidade nem final, e isso a gente aprende desde criança: é tudo ciclo.
mas um dos motivos pelos quais realmente gosto de pegar livros na biblioteca - e não simplesmente tirar xerox de um ou dois artigos ou capítulos selecionados pelo professor, cujas cópias ficam à espera dos estudantes, numa pasta no xerox - é porque folheá-los realmente me é muito prazeroso. folhear um livro é como observar um quadro de diversos ângulos, espreitar a construção - meticulosa ou não - da obra concreta que está em nossas mãos. e eis que, folheando o livro de barthes, caí justamente num artigo em que ele fala da escrita e, mais detidamente, da leitura. de como a leitura é o locus da perda de controle do escritor sobre o leitor. porque a leitura, ou ao menos um tipo de leitura, suscita, por vezes, outros pensamentos em cascata na cabeça do leitor.
e barthes chama essa leitura da leitura 'levantando a cabeça'. desafia: quem nunca leu 'levantando a cabeça'? é a leitura em que nos acometem pensamentos muitos, é a leitura ao mesmo tempo desrespeitosa (o termo é de barthes), pois interrompe o texto a toda hora, e faz conexões possivelmente inimagináveis ao escritor, e fiel, passional, pois é ao próprio texto que o leitor sempre retorna, se nutrindo dele, em movimento de vertigem - aproximação e autonomia (agora os termos são meus).
e li o trecho do ensaio apaixonante e apaixonado (barthes não economiza ao demonstrar seu amor pela literatura) para um amigo meu, também ali, na sala dos professores do cursinho, terminando de preparar sua aula - de redação. li o trecho sobre a leitura 'levantando a cabeça', e ele disse que certa vez ouviu ou leu, de alguém ou em algum lugar, sobre a biografia de hannah arendt.: ela lia 'levantando a cabeça' com freqüencia. dizque ela, durante a leitura, era acometida por intensos fluxos de pensamento e iluminação, e largava-se na cadeira, as costas curvadas para a trás, o pescoço também em curvatura, a cabeça olhando para o céu. e assim permanecia. até resolver empertigar-se na cadeira e escreverescreverescrever.
eu ouvia atenta, e esse meu amigo continuou. disse que, segundo alguma psicologia, fazemos o movimento de olhar para cima quando buscamos clareza sobre abstrações e, para baixo, quando o esforço é dar concretude a essas abstrações. ele fez uma comparação linda: a melancolia ou a introspecção que nos acomete em dias de chuva.
fiquei pensando sobre isso e, hoje, sexta-feira santa, chove. essa lembrança me é muito forte: toda sexta-feira santa chove. aqui em casa não comemos carne, e também não tem bacalhoada - na minha família, a bacalhoada sempre foi aos sábados, porque 'fazer bacalhoada em dia de penitência, reclusão, introspecção, é contradição demais', diz sempre minha mãe, quando nos lembra o motivo de não comer carne: sacrifício. sem esbanjar, sem comemorar, sem efusiva festança, que o sábado de aleluia está aí pra anunciar. pois é, sexta-feira santa. introspecção, recolhimento. e chove. o movimento? a condensação das abstrações, tão densas, tão densas, tão densas, que caem, quer vultosa quer serenamente em direção ao concreto - ou ao coração, se assim preferirem (eu prefiro) - da terra.
e não pára por aí: escorrem e tomam a forma que convém ou a forma possível? as gotas se fundem com o vento (me encanta, desde muito menina, observar os encontros das gotinhas no vidro do carro, o carro em movimento e elas se encontrando, eu ficava na torcida para escorrerem mais lentas, mais rápidas, fundirem-se, se desfundirem); acomodam-se nas superfícies que, num deslize de retidão, recebem a água que vem dos céus; infiltram-se em solos mais ou menos arenosos; percorrem longos caminhos até seu fim provisório: o encontro das águas. porque seu fim último não existe. não há finalidade nem final, e isso a gente aprende desde criança: é tudo ciclo.
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