Friday, December 30, 2011

descompasso

ele sempre foi delicadíssimo
e praticante de triathlon
numa prova ousada
jogou-se de helicóptero mais de uma vez
caiu no mar em pose de cinema: junto com o outro
que, braços em concha, o preparava para recebê-lo
e eu soube em sonho que se receberam, na lentidão do sob a água
emergiram e continuaram

e como sempre é quando
quebra-se o ritmo quando
não se reconhece a mudança do em-torno
quando emergiram e continuaram
machucaram calcanhares

Sunday, November 27, 2011

breve ensaio sobre as estações (iii)

outono

não se sabe que é outono olhando pro céu; no outono a gente olha pra dentro como quem olha pro chão pra não tropeçar. não tem encontro, não tem susto, não tem paixão. outono é vento e vento e vento e tempo do prazer de pisar em folhas secas. é vernal o prazer fugidio e sutil porque suspenso e portanto enganador: transmutar volatilidade em permanência não é justo. e por isso a ventania.

expiração

'qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura'.
guimarães rosa

é no seu abraço que eu sou um pouquinho mais sã,
quando sinto sua pele dar alento à loucura.
é seu corpo todo que me benze, me dá febre curadoura
e me restaura em graça, riso e paz.
é seu sorriso que me oferece mais
confiança no mundo que ancora
minha coragem rainha,
descoberta e fugidia
num tempo de soluço
é no seu braço meu reino destemido,

e em fé e força esgarço, sem pudor nem ranço de cansaço,
a bainha da sua roupa em que cravo
minh'alma e minhas unhas, quando no seu abraço.

Saturday, November 05, 2011

benvinda

o que denuncia um novo amor não é um novo orgasmo (isso é transa casual), um novo velho mesmo jeito de atender ao telefone (pode ser timidez), nem as tão batidas borboletas no estômago (é claro que las hay, pero desde a pré-escola). o que denuncia um novo amor é aprender um novo jeito, o jeito dela, de arrumar a cama. e tomar gosto. e zelar pela cama arrumada, vez ou outra, antes de sair.

olavo bilac

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
e triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
e alma de sonhos povoada eu tinha.

E parámos de súbito na estrada
da vida: longos anos, presa à minha
a tua mão, a vista deslumbrada
tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida,
nem o pranto os teus olhos humedece,
nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face e tremo,
vendo o teu vulto que desaparece
na extrema curva do caminho extremo.

Thursday, October 13, 2011

um dia

meu amor, eu quero ao seu lado
um dia amarelo
um dia desses em que a luz do sol já nos amanhece amarela
e logo em seguida o prédio que espio da janela se amarela
amarelo é o menino que grita sob a mangueira
e as águas que ela esguicha só refletem douradas o amarelo
e é assim um dia de carinho confortável
o amarelo que acarinha as plantas do parapeito da sua janela
que tombam e se esticam e esgueiram todas pra espiar
essa sua toda luz que também estica ressoa e escorre
e preenche de amarelo meus olhos fechados e minha rouquidão
é amarela minha ausência de voz
qualquer movimento doce e cheio da mais sincereza possível
é inteiro amarelo um dia assim
que, infindo, não tem meio nem duração:
suspende-se e fica pelo tempo que for.

Monday, August 08, 2011

mourning

enquanto ouço confissões a olhos brilhantes
de sonhos reveladores
transbordantes d'alento
fico eu cá com minh'aflição:
sonho elefantes rajados de rosa
que esguicham água em silêncio
e nem sei se me respingo;
não porque acordo, mas porque decorre
sono pesado e sem sonhos,
e nada recordo ao amanhecer.

Sunday, July 24, 2011

domingo no parque

um bocejo se confunde com um piscar d'olhos
e cores me impressionam
(sedutores artifícios):

fogos
arco-íris casual sob medida a meus olhos
filmes fotográficos para derreter o céu
(o sol ofusca e meus óculos dão ao dia ares de praia)

cuja brisa me traz
o sol nos meus cabelos
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . o sol me faz mais loira ternamente mais loira
e a brisa é mais um bocejo.

Tuesday, July 19, 2011

corpo de mulher

fitei a parede e não vi mais nada. seu cheiro é áspero, ele dissera, suas mãos em mim e eu sem saber. havia trincos na parede, resquício de umidade (são sempre as outras mesmas histórias acumuladas), e os traços imprevistos rodavam ao meu redor. nós dois no breu e tudo girava. me desorientei pelo seu suor e recebi toda a agressão que contém um corpo de homem que é pele e sangue e tanto mais que não me permitem tentar nomear.


.em busca de outra semântica.

Sunday, June 19, 2011

citadina

há manchas no meu corpo que seriam julgadas
tamanha a lascívia, tamanho o ocaso,
tamanha a luxúria que evocam e contêm

com isso que chamam pó compacto
então as cubro
com lenço e camisa e casaco e calça e renda
e pó

que em nada compactua com meus desejos de mulher.

nessa multidão que nada me oferece além de roçares

escondo e camuflo e me enquadro mas, ah!,
há sempre o indisfarçável e eu rio
rio fluido sob o sol que desembaraça tantos encontros-presentes.

Thursday, June 16, 2011

camomila

é hoje que eu durmo bem, meu amor,
apesar da sua ausência.

Wednesday, June 08, 2011

retratos urbanos - a mulher do despachante

cruzou o meu caminho – e não o contrário – uma mulher de cabelos ressecados, talvez com corte, talvez ressecados apesar da devoção e do cuidado, talvez pelo tempo seco que vem com a chegada do outono, ou pelo uso equivocado de produtos de má qualidade que são o que ela pode comprar. ela, que trabalha num despachante, e antes das 16:00 tinha ainda um copo cheio de café ao seu lado. um copo americano, de bar, o mesmo que, aposto, ela enche de cerveja aos finais de semana. não reparei se fumava, talvez sim, para compor a personagem perfeita. talvez não. talvez tenha filhos, e um deles estude no exterior. talvez o marido – ou a amante – lhe presenteie com jóias vez ou outra. talvez ela já tenha visto um jogo do corinthians no estádio, talvez lido um romance do paulo coelho ou do machado de assis. talvez ela nutra uma paixão por comida asiática, talvez cozinhe muito durante seu final-de-semana para congelar parte da comida para comer durante a semana. talvez já tenha experimentado cocaína, tomado leite com manga, feito uma cirurgia de alto risco, visto o mar. cruzou o meu caminho, ela, que passa dos trinta e talvez beire os quarenta anos, uma pele amorenada, cruzou, ela, porque me despertou vontade de saber tanto a seu respeito. cruzou o meu caminho, e não contrário, porque enquanto passava eu defronte o despachante onde trabalha – desde quando? –, ela sequer desviou os olhos da tela do computador.

Sunday, May 22, 2011

uma bebida mais forte

porque essa insistência em vestígios de amor numa relação tão violenta. porque os pés gelados num dia frio, zanzando pela casa, num quase automatismo de auto-flagelo. porque os músculos doloridos de uma noite sem memórias. porque as brechas, as frestras, o intransponível, o indizível, o indecifrável e a espreita. porque o erro, e só ele, é que faz sentido, confidenciaram-me. agarrei-me a essa máxima e não solto até o soluço passar.

Thursday, May 19, 2011

da vista da minha janela

a vista da janela do meu quarto é o muro do quintal. entre o muro e a minha janela fica uma máquina de ginástica que meu pai comprou e enferrujou, de vez em quando uma bicicleta encostada, de vez em quando meu cachorro e quando eu chamo ele pela janela ele abana o rabo e faz aquele chorinho de cachorro porque ele quer chegar mais perto de mim mas não pode por causa da máquina de ginástica enferrujada, de vez em quando da bicicleta e das grades e da tela que tem na minha janela, então mesmo que meu cachorro conseguisse colocar suas duas patinhas na beirada da janela ele não ia conseguir me dar nem uma lambidinha porque tem uma tela pra proteger de pernilongos mas ela não adianta nada porque minha casa é infestada de pernilongos então na verdade essa tela não serve pra nada e ainda por cima não deixa meu cachorro me dar uma lambidinha de carinho.

Sunday, May 08, 2011

em sagrada festa

os anjos que me circundam (eu sei)
são anjos desfigurados com cabelos cinzentos e
asas (como devem tê-las os anjos).
são fortes e sorriem e dançam e eu também sei
que se alegram quando me ilumino.

digo, por isso às vezes
me brotam lágrimas e falta o ar
- porque esses anjos querem
(esquecem sua condição celestial)
brindar a vida e no regozijo-tão se excedem
e vêm a mim todos alegres pelo tempo que há.

Thursday, April 14, 2011

em suspiro

pois não é valsa nem bolero
eu não sei seu ritmo
não te acompanho
não gingo não sambo não sei como
pegar na sua mão
te mostrar uma lua que não seja óbvia
eu não sei ousar te dizer da lua
e não sei te me mostrar em ternura e desejo porque
é você que eu quero enluarar e só.

Tuesday, April 05, 2011

mal-me-quer

eu não derramei uma lágrima.

não derramei uma lágrima e não engoli nenhum choro
desse amor insosso que você me ofereceu
não ficou nem desgosto

Saturday, April 02, 2011

(outra) escola de belas-artes

(livre versão do poema de jacques prévert, que reproduzo em seguida)

usando de cesta o chapéu,
o pai pega uma bolinha de papel
e (não é nem por magia)
a faz mergulhar na bacia
e as crianças desconfiam
surge destemida
multicolorida
a grande flor japonesa
o nenúfar que admiram
por sua instantânea beleza
e silenciam
nunca, nunca, na memória
essa flor há de murchar
essa lírica água-flor
feita para eles
num minuto de cor
diante deles.

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original:

"L'école des beaux-arts", Jacques Prévert

Dans une boîte de paille tressée

Le père choisit une petite boule de papier
Et il la jette
Dans la cuvette
Devant ses enfants intrigués
Surgit alors
Multicolore
La grande fleur japonaise
Le nénuphar instantané
Et les enfants se taisent
Émerveillés
Jamais plus tard dans leur souvenir
Cette fleur ne pourra se faner
Cette fleur subite
Faite pour eux
À la minute
Devant eux.

Tuesday, March 29, 2011

jobiniana

porque o amor é descrente e a literatura quase infinita
faço ao menos um poema por dia e me apaixono
duas ou três ou cinco vezes na semana.

aos amores, não há dedicatória: imortalizo-os.

isso de mim exige renúncia e tédio
que remedio alternando vulgaridade, excessos,
e um meticuloso gestual cúmplice em vingar cada sonho que cai por [terra.

Sunday, March 27, 2011

breve ensaio sobre as estações (ii)

inverno


o inverno é o desafio à tranquilidade d'alma. é o tempo da lentidão e das intensas solidões todas em rotações por minuto sentidas. na europa, o inverno é o encontro consigo em xícaras de chá; nos trópicos, é chuva que encharca os destemidos e assusta os precavidos – a ambos angustia, e há todos os truques e práticas no anseio pela calmaria (eu, particularmente, sou adepta da queima de uma folha do ramo de palmeira bento, pedindo proteção à santa clara quando a tempestade desespera).

Thursday, March 24, 2011

breve ensaio sobre as estações (i)

verão

o verão nada mais é que a letargia. não; o verão é o êxtase, a catarse, a nudez em conforto porque quente. o verão não são gotas de suor; o verão é o sal que marca a roupa, é a boca seca e corpos que entre si deslizam no amalgamado de cheiro denso. o verão é a estação do sexo mais feroz e sensual, é a estação do vigor corporal que garante a tranqüilidade d'alma – porquanto não a contém.

Friday, March 18, 2011

coração bobo

foi um deslize sedutor.

um salto no raciocínio
aparentemente condenável mas
encantadoramente retórico quando se trata de assuntos do coração.

e eu rasguei meu peito
fazendo duma acrobacia barata
olhos brilhantes pelo salto mortal

Sunday, March 13, 2011

not supposed to hit

ela saiu para o trabalho não sem antes carregar na maquiagem um pouco mais do que o costume. pela noite indormida, o corpo já começava a pedir descanso antes das oito da manhã. um banho ora quente ora frio servira para dar realce e acalmar um pouco os hematomas recentes (a água sempre traz as dores pra superfície do corpo, e um roxo se espalhando na pele permite maquiar de dor-de-pancada o choro de sufoco, humilhação e desespero). antes de sair, passou café e alisou a gola daquele colarinho, a camisa impecável num cabide pendurado no puxador do guarda-roupas. tomou uma xícara que caiu de golpe no estômago em jejum. é que se maltratar também é bom, às vezes, quando a encruzilhada inexiste e ser cúmplice na agressão é a única possibilidade. saiu sem dizer palavra; ele folheava o jornal sem reclamar do café forte, a camisa agora ainda semi-abotoada. quando girou a chave já do lado de fora do apartamento, cravou fundo a unha do indicador direito nas costas da mão esquerda: a marca não a deixaria esquecer de pegar as roupas na lavanderia depois do expediente. sentiu o café revirar no estômago, enquanto descia as escadas do prédio: dali dois dias seriam anfitriões no jantar anual da família, e ela sequer tinha pensado no quê servir como entrada. tateou a bolsa, abriu o carro, revirou a pasta com as anotações para a reunião de apresentação dos primeiros resultados que presidiria assim que vencesse o trânsito da cidade. digitou 'bom dia. amo você' no celular, enviou pra filha que mora longe, e deu a partida.

imagem daqui

Saturday, March 05, 2011

um retrato a uma estrangeira

eu moro num país onde as pessoas morrem
de fome
de tiro à queima-roupa
de amores e ciúme
de acidente de trânsito

nunca ninguém morreu de fome nos meus braços.

soube de quem morreu depois de jogar futebol;
antes de nascer;
vi quem morreu de desistência do corpo
e de surpresa, também
vi quem morreu despencando
e vi corpos bonitos de mortos serenos

eu vi quem nasceu cabeluda do ventre da viúva
e quem renasceu encovada de força antes dos trinta

eu li cantos sobre cabelos de suicidas no rio,
esculachos quaisquer de poetas sobre o verdejar desses fios
mas antes disso

eu fui à missa de sétimo dia de uma suicida
que me sorria sempre quando confidenciávamos amores errados
e ainda antes disso

eu perdi a voz em batalhas esganiçadas

e me amarraram por qualquer descrença e me deturparam
a voz e a força e o delinear
e então sem me dar conta

eu passei a freqüentar igrejas e velórios
a sorrir mais, conversar com anjos
e ler notícias no jornal sobre gente na rua
com fome
com sangue e com morte
insistências fronteiriças
nos nossos países.

Wednesday, March 02, 2011

antielegia

eu te conquistaria
num piscar de olhos você sabe
já ter cedido aos meus encantos
quando quisesse
iria te despir tão lentamente
como da primeira vez

até o amanhecer
quando te levei café na cama
você sabe, eu te conquistaria
nos ovos mexidos,
no suco de laranja fresco,
nos horóscopos e na costumeira divisão dos cadernos do jornal

eu te conquistaria e é leve
certo e confortável, eu sei,
você me dedica seu amor mais sincero

eu te conquistaria e você
você virou os olhos vestida e com as pernas cruzadas
não como (guardo na memória) nua quando empantanada em meu gosto
você se levantou e deu as costas
e abandonou a cadeira enviesada
e você partiu de bicicleta com os cabelos bagunçados.

Monday, February 28, 2011

cosmológica

eu não sei qual é o gosto de canjica.
eu não sei que gosto tem canjica porque da primeira vez que comi canjica sentia só
gosto
de velório
de susto
de morte

eu não sei do gosto da canjica
como não sei dos seus sonhos e do futuro do mundo
porque os seus sonhos, quando a mim rascunhados, eram só silêncio
e o mundo me insiste em dissimular e se esquecer

por isso procuro
(e permito olhos brilhando)

danças em grupos em roda
histórias em perna-de-índio
chá ou café uma ou três vezes ao dia
colecionar bandeiras e,

quando não chove,
dependurar algumas na janela.