Thursday, December 23, 2010

febril

a poesia?
vai tão encrustrada em mim
(você que a assim deixou)
que já não a percebo,
os dias passam conta-goteando. desde que você partiu.

quer dizer
– você sabe porque as noites tem sido tão claras?
eu não prego o olho e culpo a lua
e pode chover e a lua pode
se nublar que continua
o clarão e o barulho da chuva no telhado
parece seu sibilo
eu quase arrepio
inspiro e seguro o lençol sob o queixo
embolo meus pés no cobertor
e encarinho-me o rosto antes do espreguiço.

expiro e você é quase um holofote
e não sinto meu estômago porque em sonho (quando há) seu perfume me
[enche d'água e me cega e acordo e tateio
e verto em mim o que há na mesa de cabeceira e me resfrio

e não há barulho que distraia
silêncio que entorpeça
palavra que instigue ou aconchegue
tanto quanto as suas doçuras irreveláveis.

então sigo meu dia e pinto e escrevo
pra você escrevo uma confusão de perfumes
e tento pintar outro silêncio
que não aquele seu de dizer amores e preencher
mas o silêncio que pinto não te tem e não me tem e não há cores e só há água
há água e desidratração e me lembro
– não se esqueça de respirar
, e respiro

mas se respiro me inflo de cores que só a nós pertenciam,
e eu não sei tê-las sem você. então
respiro e sou só edema. não há extravasares, não há quem contenha. me
[inflo.
e à noite choro, e a lua clara holofote é tanta e insiste
e machuca meus olhos já tão secos. e sou toda secura, então,
também em garganta e suor (que seca o dentro) e coração cansado e me
[esqueço das outras partes do corpo

deito exausta e se fecho os olhos ardem
quem dera de tesão quem dera
de choro ou cansaço. ardem de não saber mais nosso encontro, como arde
[meu dorso todo de não saber mais seu toque
e me assombra seu sorriso e preciso segurar minha cabeça com as mãos
e não respirar
e você é toda-beleza e com ternura me pergunta
e me assombra seu rosto seus músculos suas contrações sua pergunta
me assombra sua pergunta
de como anda a poesia.

Monday, December 20, 2010

poema de percepção do luto

Num rascunho de poema
descubro: só sertão em mim habita
desde o ano dos velórios.

Não são temas de esconjuro,
linhas tortas ou cascatas
de infatigados dramas, não.
São escritos circulares
insustentáveis pois sem centro;
é quase desespero
contido
pois não é.

Nem é só tristeza
nem amargor nem cansaço.
É insustentável peso sem
o reboque da leveza.

Tuesday, December 14, 2010

uma elaboração de sentires

cada vez que eu tomo um banho, sinto os cheiros de costume, eu me lembro de você. a sua ausência durou o tempo exato de um pote de condicionador. o tempo exato de experimentar outra regularidade, outro cheiro. outra reação e um diferente caimento dos meus cabelos depois de banhos extraordinários. com outros ritmos, outros cheiros, outras aflições e um risco diferente marcando o vapor no espelho.

quando eu era criança, acumulava desenhos nos espelhos e nos vidros embaçados. no banheiro, depois do banho, e dentro do carro, quando chovia. eu sempre percebia que os desenhos nunca sumiam. a marca leve de cada um voltava com o novo embaçado, e eu, temperamental, oscilava sempre entre reforçar os traços muitíssimo bem-acabados ou dedicar-me a novas expressões.

hoje meu banheiro guarda em relicário um mosaico. traços que se justapõem, às vezes se sobrepõem, algumas vezes uma emenda faz surgir um novo desenho que eu só reparo muito tempo depois. me orgulho do meu mosaico; se há desbotamentos, superposições, desrespeitos estéticos e repetições, sei que tudo aparentemente opaco e embaraçado tem seu lugar, e são esses lugares os mais nobres. todos, cada um. há quem diga que é impressionista demais, esse meu mosaico, que só a mim me diz respeito e pouco comunica ao mundo. pode ser. me delicio em saber da minha história, e só eu, e só dela.

bicicleta

a bicicleta é a brincadeira mais libertadora. claro, quando seguidas as regras de como deve ser. não pode ter aquelas rodinhas, aquilo é pior que ensaio. andar de bicicleta é mais que improviso. tudo bem, tudo bem, ninguém nasce sabendo improvisar. o improviso só é bom depois de corpo e alma em exato equilíbrio entre condicionamento e liberdade. e não é ensaio que proporciona isso, não: é mergulhar, se empantanar em experiência. e é por isso (eu sei) que tem muito adulto bicicletador por aí. mas não basta vontade, não. tem que abrir, rasgar o coração.

Thursday, December 09, 2010

amarelinha

amarelinha é das brincadeiras mais gostosas: dá pra brincar sozinho, junto, misturado, competindo, ajudando. quando eu era criança, era difícil acertar a pedrinha nas casas mais longes (do sete em diante), então todo mundo juntava os pés, assim, e fazia casinha, que é como se fosse um gol (mas não é gol porque não tem trave nem rede, é só o pé, mesmo), pra segurar a pedrinha que a gente jogava (porque criança não sabe medir força, né, e as casas das amarelinhas também nem são tão grandes assim, então é fácil mesmo errar). e aí era só ir pulando, equilibrando, jogando a pedra e pegando, de um jeito tão ritmado que nem tem como confundir a ordem do que fazer.

Sunday, November 28, 2010

memórias, as futuras XXVII

a cidade do meu coração tem rios que chegam caudalosos e, lamacentos que se tornam, perdem o movimento. O empantanamento não sei dizer por donde ocorre; talvez por adensamentos acompanhados (é a tendência) de inação. inação quer pelo encanto, quer pelo sufocamento. mas arrisco dizer: tal empantanamento não é mais que circunstancial. acontece conforme as acontecenças - habitantes do meu coração - são nomeados. sim, nesse vai-e-vem:
1- quando os acontecimentos (as acontecenças, prefiro) sabem-se povo da cidade do meu coração e
2- quando a eles dá-se nomes não-inventados, em tentativa (e sob argumento) de comunicação. (porque os adensamentos são agora feitos de gesso)

mas felizmente tem-se que: o membro engessado coça, exige atenção. o percurso pode ser árduo para recuperação do vigor, do viço, da forma. exaurido em disciplina, o coração se orgulha quando de novo se movimenta!

- [isso deve ter efeito de travessão, entre linhas]

mas logo e de novo vêm os nomes e lá vamos tornar pântano novamente o membro-rio então agitado. como romper com esse ciclo vicioso? abster-se de nomear não adianta (há de se prezar pela comunicação). tampouco mudar os nomes (é trocar seis por meia-dúzia). não há como quebrar o ciclo?

(sem título por enquanto)

[a vida] quer da gente é coragem.
guimarães rosa
Não se acovarde

Não há tempo manso
ou espera que cure.

Há furacões e seus centros,
olhos de tigre cuja
menina é cardiopata
(não há ritmo)
Há a exigência da coragem.

Mais nada.

Thursday, November 04, 2010

corazón

tirei o relógio de parede que ficava na sala de casa. dependurei, tirei as pilhas e o abandonei em cima da pilha de revistas (intocadas há semanas). podia ser o seu cheiro, ou outro, tanto faz, que o tic-tac do relógio me trouxesse. mas não traz mais nada. como pode um objeto ter ou não ter história, aflorar-nos tanto na memória? tirei também o pó de um ou dois dias acumulado nos santos que circundavam meu cantinho espiritual. suspirei, sim, não tem como abrir o coração sem suspirar. às vezes abre-se sem sequer a intenção de vasculhar, mas os suspiros afloram e se fosse diagnosticar eu diria: cardiopatia grave, porque o coração retumba e ecoa, e a respiração muda (arfante ou contida, passa-se a percebê-la, e respiração é dessas coisas que quando se percebe é porque chama a atenção, e se chama atenção é porque algo de extraordinário há, e se é extraordinário pode bem ser errado, e aí nos preocupamos, quando é com alguém querido, e suspiramos, quando é dentro da gente, mesmo, porque o suspiro é o diagnóstico que o próprio coração dá à cardiopatia). virei-me, abri as cortinas, não teve brisa a brindar-me: é verão neste hemisfério, e as noites cada vez mais densas.

Wednesday, November 03, 2010

abóboras

com esse post inauguro uma nova sessão aqui no blog: receitas! (que eu faço e testo antes, pra ver se fica gostoso)

a de hoje então é: macarrão com molho branco, abóbora e champignom.

fazer o macarrão todo mundo sabe, né? ferver a água, colocar sal, o macarrão que você preferir e - isso é o mais importante pra toda receita de macarrão que se preze! - prestar atenção no tempo de cottura, que é pro macarrão não ficar nem muito duro nem muito mole, mas al dente!

numa panela separada, colocar alho, cebola, refogar por um tempo até ficar aquele cheiro bom, e douradinho, e jogar as abóboras já picadas (em pedaços grandes). colocar um pouco de sal.

o molho branco tem vários modos de fazer. dá pra fazer com creme de leite, mas eu prefiro sem, que fica mais levinho. então é só colocar um pouco de manteiga numa outra panela, deixar derreter. num copo, misturar leite com maizena, misturar bem. jogar um pouco de leite (sem maizena) na panela, e ir jogando aos poucos o leite com maizena, sempre mexendo bastante, que é pro molho engrossar. aí quando der o ponto que você gosta (mais grosso ou mais ralo), é só jogar tudo o que tinha na panela com a abóbora nessa outra panela.

nesse meio tempo, você mesmo (ou alguém, já que é gostoso também cozinhar junto com alguém) cortou os champignoms, então é só jogá-los na panela também. deixar o fogo ainda um pouquinho ligado, pra tudo ficar mais curtido.

e pronto! é só desligar e misturar com o macarrão. :)

uma dica é ralar um pouco de noz moscada por cima do molho, e dar uma boa misturada, antes de servir (depois de ter desligado o fogo). noz moscada é um dos meus temperos favoritos, fica bom em tudo! mas tem que por só um pouquinho, porque é forte. colocar queijo parmesão ralado por cima também cai muito bem!

Tuesday, October 26, 2010

réquiem

que me escrevas cartas de amor com toda a freqüência possível
mas não a freqüência exata que as exima de me surpreender.

que me consoles e carregues e acolhas
sob chuva ou arco-íris
que me pintes
(ar de rua, suor, um carinho no enlace dos dedos
e penumbra, dança, e insustentável força e meneios)
em cores sem nome

e me beijes, que me beijes como a única mulher a ti jamais entregue
conhecida em alma

e teu corpo me sonha.

e que, acima de tudo, meu amor,
saibas quando calar.

Monday, October 18, 2010

memórias, as futuras I

a cidade do meu jovem coração foi erguida em torno de duas ruas principais (ruas, e não avenidas, que é tudo muito delicado). não foi nada planejada, mas tampouco beira o caos; é uma ocupação sentimental, sem desespero, com alguma calma e permissão para um ou outro pouso provisório até achar a esquina ideal para se aconchegar. foi então quase natural fazer morada ali, entre a rua dos suspiros e a alameda da memória. com vista pro mar, nenhum luxo. tem esgoto a céu aberto logo ali em frente, e uns ninhos de passarinho que não dão sossego. mas o mar tem sereias que cantam na lua cheia, os vizinhos cozinham em uníssono aos domingos, as árvores estão ora floridas ora com seus galhos todos à mostra, corajosas que são. eu não durmo sozinha e a família está por perto.

Sunday, October 17, 2010

solidão, palavra

é madrugada quente e abafada aqui na cidade. não tenho uma janela alta pra me perder na luz dos faróis, enebriada com seu cheiro. o calor nãoé tanto a ponto de pedir um banho frio, não, mas é isso que me proponho. banho frio, água na cabeça, passadas as horas difíceis do cair da tarde. banho frio que é pro calor escorrer pescoço abaixo e empoçar nos pés, que é pra ver se você também sai um pouquinho só um pouquinho de mim, e toma forma de alguma outra coisa que não a dessa solidão ingrata. e aí nem adianta, porque é um tal de lembranças e pessoas e memórias e saudades que me compõem... por quê é que as saudades, quando vêm, embolam tudo e se manifestam no quente da lágrima que a gente nem sabe o dono?

Thursday, October 07, 2010

memórias IV

não conheci minha mãe. e aí cresci e encasquetei que era filho de sereia. embora minha respiração não fosse de bolhas de sabão (como devia ser a respiração dos filhos de sereia), e meu andar não fosse bailarinesco como devia ser o andar dos filhos de sereia, minhas sardas e meus os olhos cor de mar, que a vó me explicou que morava um mar dentro de mim, me davam alento: era claro que eu era filho de sereia, dessas que cantam bonito, namoram os pescadores e eles inventam histórias (eu nunca precisei pegar um peixe grande pra impressionar). um dia, ainda nem era tão crescido, mas andava sozinho sem desequilibrar, encarei o mar pela primeira vez. quando a onda veio mansa tocar meus pés e me convidar, entrei, avisando: voltaria quando escurecesse, que meu coração não era daquele mundo não.

Monday, October 04, 2010

uma imagem de descanso em companhia

para ler ouvindo 'chinese', de lily allen, ou 'vitoriosa', de ivan lins

espero,
esse vazio-todo-angústia que ressurge,
espero fazer dele castelo de cartas
prestes a ser brindado, leve assim,
com o sopro de criança que se mescla com riso
de saber-se senhora encantada
entre a cria e o novo vazio
já preparado, em magia e vontade
de ousar outros equilíbrios que sustentem, por fim,
uma folhinha verde, colhida ali onde começa a grama, no fim da praia, perto da rede
[onde te ouço ressonar, trono da formiga premiada, que com toda
[a delicadeza de mãos tão precisas, do topo do mundo cuidará,
coroando de novo nosso castelo.

Saturday, September 25, 2010

domingo

vem cá,
me diz seu amor
em silêncio de pescaria.

Friday, September 24, 2010

registros

Tlect. e é o momento em que do movimento conquista-se
a precisão estática
MAS
pode ser uma avalanche de palavras - captação de estado de psiqué (por definição não estático
MAS
é que é preciso alguma secura para a imagem
não virar líquida )
OU
são líquidos ou quase isso
com suas tão-duas densidades, e as possíveis misturas e claras fronteiras
da disposição
OU
da indisposição em manter sistemática coerência
oriunda/que reverbera em/ em relação dialética com
departições, separações espaciais ou (assim prefiro) temporais.



(não consigo evitar variações sobre o mesmo tema)

Wednesday, September 22, 2010

cochilo no frio

clareia-se de luz vindoura não sei d'onde o cômodo mais úmido que o normal. respiro e é doloroso acordar, como o é em toda despedida travestida de ânsia adolescente por ritmo. há que se ouvir o corpo, penso, esfrego os olhos e me levanto com cuidado, retorcendo as costas. talvez já seja tarde demais, mas - num átimo minha sensatez de tempo-espaço toma as rédeas e me tranqüiliza: ainda é cedo. dá pra voltar a dormir e arriscar um sonho.

Tuesday, September 14, 2010

memórias III

não tenho nenhum apreço por este apartamento, te digo. minhas memórias estão espalhadas e não é na outra casa nem nas salas de cinema, bibliotecas, parques, aviões. minhas memórias estão nas folhas que caem nas praças marginais das cidades, as que têm banco de concreto e mato e às vezes um pé de tênis sem cadarço ao lado de uma garrafa, ou uma criança que corre. estão em colagens que passam desapercebidas nos centros da cidade, nos rabiscos nas últimas folhas dos cadernos adolescentes; algumas estão em portas de banheiro público, um pouquinho numa rodoviária pré-feriado, aí sim. na rua de uma cidade do interior com o sol amanhecendo num domingo dia-das-mães, eu muito jovem, reconhecendo a cidade, insone. minhas memórias estão na retina de um senhor simpático com sotaque argentino que me diz galanteios e eu, menina de tudo, enrubesço. no café fraco da minha avó, misturado com cheiro de queijo meia-cura e o sotaque que me traz alento e raiz. minhas memórias estão na cicatriz que marca o dorso daquela mulher, do umbigo até quase a lateral do seio, e nas coisas bonitas que me dissera. minhas memórias não são palavras, mas o que as palavras fizeram em mim. minhas memórias pairam, assim. adoçam um bom dia. são o ramo bento prestes a ser queimado pra santa bárbara proteger a casa quando chove tempestade. minhas memórias não cabem em mim, e é também por isso, um pouco por isso, que as compartilho.

memórias II

eu gosto muito de xadrez, mas odiava um xadrez desarmonioso que minha irmã sempre usava. acho que era bordô. ou lilás, mas sem charme algum. vestia sempre e ia regar as plantas, mas o meu cacto ela regava só de vez em quando, como eu tinha ensinado, que é pra ele não acumular um monte de água e morrer. eu gostava do cacto no meu quarto, tinha um cantinho pra ele lá, todo especial. mas quando ele começava envergar implorando pela janela eu deixava ele uns dias no quintal tomando um solzinho. minha mãe me ensinou o nome desse arrastamento que é: fototropismo, mas eu acho que era agonia. eu, se fico uns dias sem ver sol, me arrasto pela casa e perco a vontade de sair. evito as janelas. mas não sempre. se vejo alguém entrar corado, fico envergonhada, corro me pintar e finjo. desço e subo, pela escada, algumas vezes. se tenho meus óculos escuros, dou uma voltinha pelo bairro, sim, cumprimento quem passa, quando subo de novo preciso me sentar que meu coração acelera. são muitos os lances de escada, e muito a vida propõe. mas olhe, quando você for sair, encoste a porta. já já os mais novos levantam e não quero que peguem friagem.

memórias I

minhas memórias são retalhadas. eu nunca sofri um acidente de carro e tenho cicatrizes do tamanho de um casco de jabuti. jamais precisei esfregar o pára-choque do carro pra limpar vestígios de sangue de um atropelamento ocasional. mas minhas roupas são impregnadas de respingos amarronzados. eu não sei a máquina de lavar ainda está enferrujada, talvez seja isso, ou o varal. não me lembro da casa onde passei a infância, mas tenho cá comigo uma primeira vez de lágrimas rolando, meus primos ao meu redor. não tinha sangue nem pancada: era um passarinho-meio-ovo que caíra com a bola que eu não segurei no gol. e ficou ali espatifado, e nós todos tão crianças com aquela dor tão imensa e a culpa pelo passarinho-meio-ainda-ovo no chão. porque ele ainda não sabia voar. me lembro também de um hospital, muitos anos depois, uns cabelos brancos e a falta de ar que eu disfarçava quando entrava e dizia o 'bom dia' mais alegre que conseguia. morria um pouquinho sempre que punha os pés naquela branquidão, e quando percebi que o tom era igualzinho ao de casca de ovo, vomitei.

Sunday, August 29, 2010

um carinho

- é como uma caixinha de música, ela poderia ter dito, rodopiando displicentemente o indicador, num movimento circular que não se concluía com precisão e se alongava num carinho no meu antebraço.
- pode ser a valsa mais conhecida; se tocada numa caixinha de música, comove e encanta sem precedentes.
eu poderia ter fechado os olhos, então, e roçado as costas da minha mão bem de leve na penugem de seu rosto. e ouviria, num suspiro:
você? ué, você é minha caixinha de música, ou minha valsa. é tanto que tanto faz.
e estalaria um beijo.

Tuesday, August 24, 2010

retratos possíveis de um par de mãos

'mas essa gente aí, hein? como é que faz?'
adoniran barbosa, despejo na favela

eu gosto da maneira como as cenouras chegam fatiadas ao meu prato. eu não domino a arte de fatiá-las desse jeito; parecem maiores do que uma rodela de cenoura pode ser; maiores e mais saborosas.
mas eu não sei nada das mãos que as fatiaram. não sei se gostam de cenoura, se já almoçaram ou se, famintas, petiscam sorrateiras um brócolis dando sopa. não sei de seus planos, se seus filhos já lêem ou se elas já viram o mar. não sei se trabalham aos domingos, se preferem picanha ou feijoada, se assistem a novela das oito passando roupa ou de olho na panela no fogo pro almoço do dia seguinte. não sei se já tiveram que se defender de ameaças violentas; se, descontroladas, tiveram acolhimento; se cuidaram de algum coração em despedaço. não sei se têm rugas de tempo vivido, de acúmulo de sofrimento, de descuido em lavar roupa com pedra-sabão. não sei se essas mãos têm alianças abençoadas de uma união alegre. se o calor delas é cotidianamente compartilhado com o de outro par; e se o par é sempre o mesmo, se o toque é macio embora as mãos sejam ásperas, ávidas por conforto. não sei qual foi a última vez que essas mãos tiveram o cuidado que deveriam ter. sei que, esplendorosamente, cortaram cenouras há algumas horas atrás. mais nada.

Tuesday, August 10, 2010

uma breve história de amores (ou: tempo da delicadeza)

houve um tempo em que eu partia. quase todos os dias, quase sempre à mesma hora, deixava aquele reino tão íntimo e tão compartilhado, para me reinserir no outro cotidiano, igualmente real, que continha tantos sonhos quanto o outro, e assustava um pouco menos.

depois ousei ficar. por uma ou outra hora a mais, desafiar a rotina traçada. varar alguns dias, perder alguma noção do tempo.

foram alguns, esses tempos de ousar ficar. e foram vários os ficares ousados. distintos entre si, sempre repletos de significados (até na ausência de sentido, quando era o desafio do susto do absurdo que eu buscava).

sucedeu-se que agora havia o tempo da dança. da harmonia entre o ficar e o partir. até que... da harmonia fez-se a síncope. e não é a síncope que faz o samba? a dança se encheu de retumbares.

e do meu coração em arritmia, como na falta de ar imediata, faço suspender, até segunda ordem, os toques que enchem d'água atrás dos olhos.
suspendo o sorriso que jogo pro céu quando você me diz amores com seus olhos depois que me beija. fica em suspensão minha entrega. suspensão de suspiro, na calma da memória e do coração.

Sunday, July 11, 2010

luz

quero saber se você vem comigo a não andar e não falar
pablo neruda

também eu silencio quando tu te calas.

antes fosse silêncio cúmplice, amantes em respiração uníssona maior;
não.
é silêncio de assombro pelo descompasso, lamento pelo passado [então
presente, angústia da impossível compreensão (cada passado é [presente - e só presente - para quem o viveu. mais nada).
esse silêncio não corrói nem escorre; paira ensimesmado em sua densidade tão.
é quase óleo. é quase
como o frio quando o corpo toca o lençol: sustenta-se.

esse silêncio não se quebra, meu amor. nesse silêncio adentramos, e dele nos empantanamos, ávidas em prosa e sol, cúmplices em permanência e gratidão.

Monday, June 28, 2010

a paixão doce

ouve.
é o sol
que desponta ali, amanhã,
no sorriso nosso.

Monday, June 14, 2010

desvencilhares

para ler ouvindo, talvez, 'i'll follow the sun', dos beatles.

primeiro foi o cd que - e eu juro não ter tratado mal - deu pra só tocar a faixa 10, cismando no não me leve a mal, embalado por aquela voz doce então metálica e irreconhecível. olhei contra a luz, alguns riscos, nada que outros também não tivessem - eu ouço meus cds até criar sulco. de imediato, baixei as músicas - sabia a ordem das faixas de cor - e gravei de novo. num novo que não caía bem. ficou esquecido, até meu irmão encontrar e perguntar se podia usar numa das suas instalações itinerantes. debaixo da poeira acumulada, vi nele as iniciais dos nossos nomes. já fazia alguns meses, nada caía bem. e não caía mal, também - sequer incomodava. dei um meneio de cabeça, cerrei os olhos. a bicicleta ficou imponente com aqueles brilhantes nas rodas refletindo a luz do sol.

depois foi a experiência do primeiro stencil, numa camiseta branca tão surrada que as duas usávamos pra dormir. ficava ora na casa dela, ora na minha, aquele algodão macio de tanto usar e ser lavado. branco já encardido, o preto do stencil desbotadíssimo, a mescla dos nossos cheiros (que eu pensava) encrustrada. na arrumação da terceira gaveta, sábado à noite, encontrei-a no fundo, amarrotada, cheiro de guardado. joguei na máquina sem me dar conta da calcinha roxa presa no fundo. um novo tom lilás: a camiseta se prendeu - a máquina eu adquirira num rolo havia uma semana, com todos os enroscos a que tinha direito -, meus calcanhares saíram do chão quando me debrucei puxando o trapo. a camiseta em algodão macio se desfez na minha mão esquerda. (o lilás na calcinha desbota cada vez mais, a tinta saindo à medida que o conforto do tecido aumenta e recebe meu corpo.)

foram se sucedendo, por esses longos seis ou sete ou oito (estamos em junho?) meses depois da nossa separação, esses pequenos deslizes, essas pequenas sabotagens. esses pequenos adeuzes das coisas nossas-dela, que, por sufoco, cansaço, carência ou displicência, não mais reconheciam sua morada ali, no meu apartamento.

na semana passada as taças, é claro, coroaram a despedida. vinho não é bebida que se toma só, sempre bradei, e nem tive pudores em usar as taças que ela havia me dado, desperdiçar um pouco no carpete e no edredon (era noite de lua cheia; a embriaguez comanda a precisão de outros gestos que não o de manter os copos em lugares seguros). foi pela manhã, uma manhã clara, brilho no rosto, louça acumulada. nem fui lavar as taças; só mudá-las de lugar para pegar o pó de café, e elas cederam. como numa dança de despedida desesperada, doce e consentida, estilhaçaram-se aos meus pés. no quarto ao lado, não se ouviu nenhum barulho; estanquei o corte que me fizeram durante a queda, embrulhei os cacos no jornal do dia, com uma mescla de alívio, satisfação e - confesso - o rosto quente e o coração acelerado. era isso, então. abri a porta do quarto, ouvi um suspiro, e me deitei ao lado de um corpo mais quente que o meu, cujo ritmo de respiração é que fazia todo o sentido do mundo.

Friday, June 11, 2010

timão, cimento e luz

Há sombra sob os pés.

Assombra aos olhos do velho
a moça com sombrinha,
tão só!,
a moça.

A calçada é cheia.
A rua é cheia.
O sol arde as retinas,
(menino espia do carro)

meu coração é farol.

Monday, May 31, 2010

o casamento

no início, sentira asco. não pelo odor, nem pela aparência; mas pela sensação de sentir o sebo em sua pele. as experiências com a pele transcendiam-lhe o sentido do êxtase e da lucidez. escrevia na pele; ensaiava o mundo e a vida; cobria-se com roupas comuns. subvertia qualquer comunicação. gravurava em si delicadezas e agressões em níveis de que só ela tinha plena compreensão. o brilho de olhos e a unha imunda. ia à padaria, trabalhava no jardim, tecia amigos invisíveis. mente em brasa e corpo em flor.

Saturday, May 22, 2010

quarta ou quinta-feira

na manhã clara, ressonância do sonho e acalanto de fundo, passo por mulheres e homens. destemidos, seguem obstinados o caminho corriqueiro ou excepcional. extraordinariamente, o sol se movimenta ao centro, e, ao centro e avante, também eu continuo, e valseio num assobio.

Wednesday, May 05, 2010

livro de artista

Retumba dentro de mim
qualquer coisa de dispersa -
me rouba tempo e saúde.
Não temo a toada voltar,
à galope, tato ou luz.

Cabe saudação ao tempo,
quando em mim, mulher no cio,
um balanceio arredio
(susto percussionado)
desafia em sina e trato
e em quentura, cirandeia
meu encantamento vadio.

Tuesday, May 04, 2010

tensão

caminhava entretida com tantos faróis que nem me dei conta que a subida acabara; ele me deteve pelo braço: 'é aqui'. nos despedimos, agradeci a gentileza dele ter me acompanhado, e encarei o prédio. não era tão assustador; seus 17 andares com dez janelinhas por andar me lembraram um documentário que havia visto na véspera, sobre o cotidiano num prédio não tão nobre numa região não tão decadente de outra grande cidade.
no estômago, o suco de abacate carregado no açúcar me nauseava; e qualquer música dançante dos anos 70 insistia em anacronicamente me acompanhar.
fumei algo entre um e três cigarros, esperei pelo tempo duma ambulância passar, e dos letreiros luminosos da farmácia oscilarem - era muita demanda de energia pra um lugar só.
telefonei: 'oi, tô aqui embaixo'.
'já tô descendo', era o ponto de não-retorno.

feriado

sonhei com teletransportes e gente vestida a rigor ao ar livre. era um dia frio na sombra, com sol que aquecia a pele por veias dos ramos das árvores viçosas. as pessoas sorriam sinceras, era um sonho bonito e cheio de calor.
acordei sem saber onde estava, sabe como é? que dia é hoje? do mês? da semana? que horas são? mas não é quarta-feira? jurava que a cama era virada pr'outro lado... como esse armário veio parar aqui? (aturdida, sei que falei, os olhos ainda fechados - não havia armário algum).
a resposta veio d'outro corpo, num antebraço macio dono de todo o sentido do mundo.
- bom dia.

Thursday, April 22, 2010

da velocidade

há momentos em que eu preciso esperar. não sei o quê, não sei porquê, ou pra quê. mas esperar, que eu sei que. esperar um evento, um acontecimento. algum estímulo, de dentro ou de fora, para seguir caminho ou me deixar levar. às vezes espero na procrastinação: no silêncio de quando o álbum acaba; na vadiagem obcecada por rastros virtuais; no domingo que se alonga por toda a semana e pesa debaixo dos olhos. n'outras vezes, espero freneticamente: chacoalho as pernas sem perceber, num ambiente lotado qualquer; entorno copo atrás de copo de cerveja; arrisco um cigarro; desvio olhares, arrisco fechar os olhos e aguçar outros sentidos. gosto mesmo é de quando essa espera cede lugar a outros tempos - mas aí já é acontecimento. o nascer do sol, especialmente, funciona como interlúdio na espera, e então, quando vejo, é entre baixar a guarda, os óculos de sol e os ombros, um pouco mais, que até a espera virou elemento de sinfonia. o novo desafio é descobrir (desvelando, dirigindo e orquestrando) se o movimento é de valsa, marcha ou fuga. se a modulação do tema, se há, é mais alegre ou menos rápida; se a expansão melódica respeita o tom e o andamento; quão ousada é a invenção. é evidente que me questiono com freqüência sobre quais são as permutações impossíveis, e também com certa freqüência concluo versando variações sobre o mesmo tema. mas se é sobre tempo que falo aqui, aquieta meu coração a certeza das novidades.

para ler ouvindo: resposta ao tempo, de aldir blanc. na interpretação, claro, de nana caymmi.

Sunday, April 18, 2010

a boa solidão

a boa solidão é feita da luz mais bonita
luz de tarde de inverno que brinda qualquer passante
imerso em qualquer leitura
desvela perfis cotidianos
dessa boa e luminosa solidão brota delicadeza e respiração lenta
a boa solidão é matéria-prima para
estar no mundo
presente
consigo
ver beleza e encanto no ordinário.

(era para ter sido publicado com uma imagem de Anahi DeCanio, mas não consegui fazer o upload; dá pra ver aqui)

Friday, April 16, 2010

apenas

era pra ser só mais um copo de cerveja, o colarinho impecável e a espuma se erigindo e equilibrando elegantemente por sobre toda a borda do copo americano. uma marcha transpassada, tocada pelo pianista do andar de cima; um telegrama do marido preso pelos militares; o alívio de passar na prova de epidemiologia mereciam muitos copos de cerveja. mas a ânsia brotou, talvez de um corpo moreno despertando-lhe asco enquanto a tentava seduzir naquele ambiente claustrofobicamente ensurdecedor, talvez aqueles músculos enrijecidos atentaram contra qualquer conforto interno, e também ela toda passou a se contorcer.
não havia nada de escatológico nos seus movimentos, só o impelir-se adiante. vomitou, correu, despelou-se à navalha, tosou o cabelo. precisava desvencilhar-se do mundo, esvaziar-se de si e da sua história.
amanheceu.
havia toda a área externa daquela pensão barata para limpar. ela não podia se dar ao luxo de se deprimir e perder as forças, não. jogou um balde d'água para esparramar da maneira mais uniforme possível, ainda que aleatória, a espuma concentrada no chão. esfregava sem se lembrar do colarinho impecável do copo de cerveja. é assim que as coisas se dissipam, ou nem se permite que se condensem.

inspirado numa cena de 'assédio', filme lindo, lindo, lindo, de bernardo bertolucci.

Sunday, April 11, 2010

variações sobre o mesmo tema

quer à primeira vista, quer na lenta transformação da amizade virando-alguma-coisa-diferente-que-não-sei-bem-o-quê-é; na concretização mais romântica do platônico, com direito a jantar à luz de velas; no hedonismo embriagado do dionisíaco uma-noite-e-nada-mais: todo amor já nasce viciado.
pode ser meticulosamente arquitetado, como os dados ocos com peso de resina precisamente no centro do lado do número seis; como pode ser também o vício que se instaura aos poucos, da maconha à heroína, e vai nos consumindo até tornar embaçada a distinção entre sujeito e objeto de desejo. até dissimular quem escolhe, quem decide, quem consome, e o quê é consumido.
então a diferença fundamental, e que deixa toda história de amor bonita, reside justamente nos desenrolares: se o amor já nasce viciado, no mesmo instante em que nasce, contudo, já é único. pois os instantes que vão se sucedendo em cada história são instantes-já, como diz clarice lispector. irreversíveis, intangíveis, impossíveis de não-serem, ao passo que, por definição, são. é ao mesmo tempo um alento e uma qualidade: mais ou menos como dizer que, se todo amor nasce viciado, as possibilidades de vício são geridas pela verdade idiossincrática de cada pessoa, ou melhor, de cada uma das pessoas que compõe o par (ou trio, quarteto, quinteto...) amoroso. As possibilidades de vícios existem na proporção em que cada um já tem sua história e seu modo de contá-la. Na medida em que não existem impressões digitais idênticas, ou em que em cada gole de cerveja reside uma novidade, uma aflição.
Na medida em que cada dança pode ser sincopada ou lenta, e, para cada caracterização existem ainda (no mínimo) um novo par de possibilidades que se abre. a dança lenta apaixonada numa noite quente de verão seguida de beijos lascivos e roupas ao pé da cama, o telefonema da ex no dia seguinte quando há outros braços ao redor, um cigarro entre vestir o sutiã e o par de sandálias, um suspiro e a meia-volta arrependida (porque a gente sempre volta pro vício, ou ele pra nós; a ordem nem importa), por exemplo, é só uma possibilidade da combinação de todos os elementos passíveis de permutação (incluídos aí todos os imprevisíveis - a esmagadora maioria). delícia de vício.

por acaso

ele usava uma máscara branca e preta e vestia suspensórios, o que, junto com seu andar e meneios de cabeça que eu logo supus característicos, confiavam-lhe um ar algo entre o kitsch e o blasé. nada mal para um bloco numa cidade tão provinciana, pensei comigo. é claro que não nos beijamos ao som de 'máscara negra'; eu queria muito menos carnaval e mais folhetim. foi no 'ô ô ô ô' de aurora que nossos olhos se encontraram, e antes de qualquer ladainha sobre sinceridade, amanheci enredada em seus braços.

para ler ouvindo: 'folhetim', de chico buarque.

Friday, April 02, 2010

de livros, chuva e encontros

ontem estava na sala dos professores da escola onde funciona o cursinho popular do qual participo e, entre uma aula e outra, folheei um livro de roland barthes, 'o rumor da língua'. o livro é uma coletânea de pequenos artigos, e cheguei a ele através da indicação de uma admirável professora. a idéia era ler um artigo em que ele fala de benveniste, lingüista, para tentar entender um pouco mais do paradigma em que repousa a etnografia de jeanne favret-saada, uma antropóloga em cuja obra estou mergulhada nesses tempos.

mas um dos motivos pelos quais realmente gosto de pegar livros na biblioteca - e não simplesmente tirar xerox de um ou dois artigos ou capítulos selecionados pelo professor, cujas cópias ficam à espera dos estudantes, numa pasta no xerox - é porque folheá-los realmente me é muito prazeroso. folhear um livro é como observar um quadro de diversos ângulos, espreitar a construção - meticulosa ou não - da obra concreta que está em nossas mãos. e eis que, folheando o livro de barthes, caí justamente num artigo em que ele fala da escrita e, mais detidamente, da leitura. de como a leitura é o locus da perda de controle do escritor sobre o leitor. porque a leitura, ou ao menos um tipo de leitura, suscita, por vezes, outros pensamentos em cascata na cabeça do leitor.

e barthes chama essa leitura da leitura 'levantando a cabeça'. desafia: quem nunca leu 'levantando a cabeça'? é a leitura em que nos acometem pensamentos muitos, é a leitura ao mesmo tempo desrespeitosa (o termo é de barthes), pois interrompe o texto a toda hora, e faz conexões possivelmente inimagináveis ao escritor, e fiel, passional, pois é ao próprio texto que o leitor sempre retorna, se nutrindo dele, em movimento de vertigem - aproximação e autonomia (agora os termos são meus).

e li o trecho do ensaio apaixonante e apaixonado (barthes não economiza ao demonstrar seu amor pela literatura) para um amigo meu, também ali, na sala dos professores do cursinho, terminando de preparar sua aula - de redação. li o trecho sobre a leitura 'levantando a cabeça', e ele disse que certa vez ouviu ou leu, de alguém ou em algum lugar, sobre a biografia de hannah arendt.: ela lia 'levantando a cabeça' com freqüencia. dizque ela, durante a leitura, era acometida por intensos fluxos de pensamento e iluminação, e largava-se na cadeira, as costas curvadas para a trás, o pescoço também em curvatura, a cabeça olhando para o céu. e assim permanecia. até resolver empertigar-se na cadeira e escreverescreverescrever.

eu ouvia atenta, e esse meu amigo continuou. disse que, segundo alguma psicologia, fazemos o movimento de olhar para cima quando buscamos clareza sobre abstrações e, para baixo, quando o esforço é dar concretude a essas abstrações. ele fez uma comparação linda: a melancolia ou a introspecção que nos acomete em dias de chuva.

fiquei pensando sobre isso e, hoje, sexta-feira santa, chove. essa lembrança me é muito forte: toda sexta-feira santa chove. aqui em casa não comemos carne, e também não tem bacalhoada - na minha família, a bacalhoada sempre foi aos sábados, porque 'fazer bacalhoada em dia de penitência, reclusão, introspecção, é contradição demais', diz sempre minha mãe, quando nos lembra o motivo de não comer carne: sacrifício. sem esbanjar, sem comemorar, sem efusiva festança, que o sábado de aleluia está aí pra anunciar. pois é, sexta-feira santa. introspecção, recolhimento. e chove. o movimento? a condensação das abstrações, tão densas, tão densas, tão densas, que caem, quer vultosa quer serenamente em direção ao concreto - ou ao coração, se assim preferirem (eu prefiro) - da terra.

e não pára por aí: escorrem e tomam a forma que convém ou a forma possível? as gotas se fundem com o vento (me encanta, desde muito menina, observar os encontros das gotinhas no vidro do carro, o carro em movimento e elas se encontrando, eu ficava na torcida para escorrerem mais lentas, mais rápidas, fundirem-se, se desfundirem); acomodam-se nas superfícies que, num deslize de retidão, recebem a água que vem dos céus; infiltram-se em solos mais ou menos arenosos; percorrem longos caminhos até seu fim provisório: o encontro das águas. porque seu fim último não existe. não há finalidade nem final, e isso a gente aprende desde criança: é tudo ciclo.

Saudades, de Mia Couto

Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
sói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono

história de um futuro amor

semana passada, dormiu nos meus braços; na noite de antes de ontem, hesitei entre ficar e sair, agonizei, quase chorei. acabei adormecendo enlaçada.
entre o dia em que conheci sua expressão de entrega e o dia em que não me lembro mais de seu rosto em alegria compartilhada, mora meu coração exausto.
ontem percebi que me despedi com ternura, e saí sem olhar pra trás, numa lágrima fugidia.
são coisas do mundo, minha nêga. eu não posso explicar meus desencontros.

alguma ternura

não fosse, meu amigo, alguma ternura, embalada com cuidado e persistência num embrulho divino de quase natal, não fosse alguma ternura, querido, sei que teria rendido.

cedido, rendido à terra, no susto ao encontrar a palidez dos que amamos envolta em flores.
e são lágrimas, gritos, acordes ressonantes que me acordam nas madrugadas, são ainda tremores e emoções em qualquer toque à contrapêlo, no receio de qualquer coisa nova, bela, sincera, no receio de qualquer carinho que seja.
e são também entregas lascivas, a pele em brasa, rubi coração em relinchadas; são espaços-todos-ocupados nos corpos que se querem encontro d'ossos, em tempos sincopados por suspiros e rouquidão.

noite a noite, há ternura. há alguma ternura, vinda de não sei onde, num repouso de cansaço, num enlace de dedos, numa cúmplice aprovação.

e há tempo para esquecer, há tempo para render-se ao desenfreio da solidão.

e há o dia. há o despertar. há coragem de novo, e recompensas todas.
pelo céu, pelo seu, pelo meu e pelos nossos.

Friday, March 12, 2010

tão logo a noite acabe

ela assumiu pra si o que queria, enfim, de mim. olhos marejados, tentei em vão explicar que o mundo pesa demais, não exija certezas de mim, te garanto minha sinceridade por alguns segundos latejantes, antes de suas dissoluções no não-nosso tempo-espaço. observei seus passos sem saber se decididos ou entorpecidos – pode a embriaguez preencher de solidez todo um gestual –, na noite tão clara e sem um farol. não foi difícil me levantar e seguir rumo, não. o peso já era outro, pelas pálpebras e lábios, mas não brotava do meu mais profundo interior, apesar de ir além do peso do mundo todo. sentia uma tristeza ritual, em resignada conclusão sobre a solidão (o esbarrar numa querida amizade em estado esfuziante me esquentou, sim, um pouco, – de leve – o coração). é que se desvencilhar, às vezes, é fácil demais. mas nem por isso menos triste.

Wednesday, March 03, 2010

mulher comum

sou uma mulher comum, como você. cruzo a avenida sob a pressão do imperialismo. poesia? cotidiana, embora em descompasso e corriqueiramente atropelada pelo ritmo do pau-de-arara. são nossos corpos de sonho e margarida que seguem, sangue e samba, enquanto gira inteira a noite sobre a pátria desigual. a vida nós a fazemos nossa, cantando em meio à fome e dizendo sim – em meio à violência e a solidão dizendo sim – pelo espanto da beleza. não digo que a vida é bela; tampouco me nego a ela – digo sim.

livre inspiração e adaptação, minha, sobre os poemas de ferreira gullar: 'homem comum' e 'digo sim'.

Saturday, February 27, 2010

seresta

um leve odor de gengibre e noz moscada, copos afastados, marcas liquorosas - os traços. sempre há cacos, espalhados, alguns ameaçam no chão. a música é toda novidade, e é novo também o beijo. é outro prazer, outra pele, outro orgasmo. amor novo, instiga e obriga a reconhecer outras cumplicidades e belezas. a entrega é entre a certeza e a descoberta. e o alívio pelo encantamento.

é que se eu cair em seus braços não há despertador que me faça levantar.

Saturday, February 20, 2010

"o que é fome"

com o perdão de uma possível piada, a fome é um tema latente pra mim. desde antes de entrar na faculdade de ciências sociais (que me seduziu no desejo também latente - e que hoje vagueia por caminhos esguios - de 'mudar o mundo'), a existência das pessoas que passavam fome e que morriam de fome me deixa consternada. e nessas cíclicas (e, com licença, latentes) tormentas, despertadas freqüentemente pelo noticiário, o mundo me doía.

mas até hoje nunca estudei sistematicamente 'o problema da fome'. li uma coisa ou outra do josué de castro; me arrependi por não ter cursado uma disciplina eletiva que trataria sobre o assunto... e hoje peguei nas mãos um livrinho de bolso, desses da coleção primeiros passos, da extinta (?) editora brasiliense: "O que é fome", de Ricardo Abramovay, hoje professor de economia na FEA/USP. vou escrever aqui um pouquinho sobre ele, e o assunto continuará.

O livro é curtinho, e dá pra ler muito rápido. Fiquei admirada com o modo como o autor organiza sua argumentação para desmascarar não só o supra-sumo do pensamento hegemônico travestido de senso comum que declara: "os pobres são culpados pela sua própria fome, porque não sabem se alimentar direito", mas também os argumentos cientificíssimos (digo, com respaldo na acadêmia e entre os cientistas da época), bio-geográficos (ou geofísicos?) - de que a alimentação nos trópicos é muito pobre em proteínas, ou, ainda, de que ela pode até ser suficientemente rica em proteínas, mas não atinge o nível mínimo de calorias para que as proteínas possam ser devidamente aproveitadas pelo organismo de cada mulher e de cada homem.

Esse último argumento (o argumento da chamada "fome calórica") corrobora a corrente malthusiana: se as calorias ingeridas não têm sido suficientes, é porque não há alimento suficiente no mundo. Porque o crescimento populacional seria da ordem de uma progressão geométrica (lembrei das aulas da minha querida professora de estatística, alô Verónica! - , de 2 para 4, para 8, para 16, para 32), enquando o desenvolvimento da produção agrícola seguiria um padrão de uma progressão aritmética (de 2 pra 4, para 6, para 8, para 10). Logo, salve-se quem puder!, logo logo não vai mais ter lugar pra todo mundo na Terra - neomalthusianos, meus caros, definam lugar, definam Terra, definam 'há lugar para todos hoje'.

Enfim, a real é que essa corrente de pensamento dominou inclusive as ciências até o começo dos anos 1960, e, bem, como métodos contraceptivos não eram exatamente bem-vindos, a solução era: controle populacional. N'outras palavras: guerra e crise. Porque nessas situações extra-ordinárias as pessoas morriam, e então, por mais paradoxal que isso possa parecer, a sobrevivência da espécie ficava garantida - tão natural quanto a mão invisível do mercado.

Por desencargo de consciência ou por um compromisso político maior com minhas verdades, vou pontuar aqui que o problema da fome não é um problema de produção de alimentos, nem da cultura alimentar de um determinado povo ou grupo social. O buraco é muito mais embaixo: falta distribuição. E não falta distribuição de alimentos por desorganização das autoridades, do Estado, ou do governo, ou por conta dos capatazes do campo que ainda têm suas próprias leis e são os senhores em seus territórios. Tampouco a distribuição é injusta por negligência ou falta de prioridade, nada disso, nada disso. As ações ou os braços cruzados por parte da governança nacional e internacional é interessada. Tem seus motivos por trás. E qual é o interesse maior que orquestra isso tudo? No próximo post vou comentar um texto do Josué de Castro, e aí veremos.

Thursday, February 18, 2010

'anda, rosa, vem me ver'

roupas espalhadas pelo chão não denunciam qualquer tranqüilidade d'alma. não, não. é a cinzura que se espalha pelo dia e minha ternura vadia que não encontra ocupação. tô por aqui. pode se achegar, que nem vai implodir a minha solidão. tanto cuidado é bobagem, me chama que eu vou num repique de águas claras, em corpo inteiro e mansidão.


imagem daqui

Tuesday, February 16, 2010

caso de carnaval

me encontra amanhã, virando a terceira esquina depois da última nuvem de chuva.

Monday, February 01, 2010

amador (ou "As horas nuas")

as últimas horas da tarde. o céu rodando em tonalidades por minuto. ainda é claro, e a lua, suavemente, intensifica sua presença entre azuis e alaranjados. num instante o laranja ainda solar cede ao brilho imponente, ainda que delicado, da lua quse-cheia.
respiro, olho, me calo, tento calar em pensamento. quero fotografar detalhes, fazer jus à riqueza. opto por fotografar na alma-coração, mantenho os olhos abertos e silencio também na visão. então sou toda a tarde que cai, sou eu toda a noitinha que vem.
o céu agora é nuvens cinzentas, o céu é todo ele de um azul cinzento, e também o mar escurece. mas nenhum dos cinzas é de tristeza, melancolia ou aflição. tampouco são acoplados de menos intensidade; não. são as horas vivamente sutis. a exatidão do olhar cambaleia, os corpos se movimentos com cuidado, leveza e desapercebida destreza.
são as horas das solidões profundas, dos suspiros sem desalento, e até dos encontros: é a hora mestra do amálgama entre lucidez e embriaguez, numa cúmplice e acolhedora meia-luz.

ps: o título entre aspas é referência ao livro homônimo de lygia fagundes telles, cuja leitura eu recomendíssimo - e que, embora não tenha sido referência pra esse meu escrito, foi por ele a mim lembrado, em sentimento.

Wednesday, January 20, 2010

das saudades, também

existem dois tipos de saudade, e ambos enchem os olhos de lágrimas. o primeiro é o que enche os olhos de lágrimas por dentro, com a alegria da memória e do reencontro breve, possível, certeiro. o segundo inunda a alma e transborda pelos olhos, por fora, escorre no rosto com a memória do convívio ou de qualquer lembrança ocasional, e com a certeza do nunca mais.

[de quebra, e porque o título desse post quase foi 'das saudades que deixo estar embora', vou colocar uma poesia minha aqui:]

Dissimulada
Stella Paterniani

Se perguntarem
- e perguntam -
das saudades que deixo estar
embora
descortinado olhar rechovendo,

diz do sol, das gentes, das ruas
- como te digo eu -
e diz que de mim resta
a vida con-
tudo
afora
caminhos de tenra solidão.

É que não deixo,
não sinto
(sinto)
toque de outra mão.

Diz do teu botão de rosa,
das ruínas que deixei.
Diz amor, cantar, pomar,
imensidão.
Diz do mar e da cidade,
(como arde!)
de metas nossas, desejos, de ti.
Detém-te
(e falo sério)
a dizer do tempo
dos tempos,
dos tempos.

Lavo minhas mãos.

Diz da estrada.
Lama e sonhos.

Tuesday, January 05, 2010

Redes

Encontro de confidências,
riso alto e sussurro.

Balanceio com vento ou impulso.

Corpo suspenso
no conforto do amparo
maleável.

Amizade é isso, então: solidão compartilhada.