Monday, April 23, 2012

à parte as objeções


meu tempo é o abafado das caixas de sapato
de bico-fino sob outras caixas tantas
que se logra abrir com cuidado
em tardes amenas,
antevésperas de grandes eventos.

meu tempo é o embaçado desigual da vidraça do banco de trás
quando as crianças fazem apostas mentais sobre a corrida das gotas de chuva
e desenham até onde a mão alcança
repetidas sempre vezes
e a gordura se encrusta.

meu tempo é o encurvado de uma persiana
da janela central de uma pequena casa
onde por apreço à claridade essa persiana não tem uso
e seus cantos suspensos sustentam
o bicho todo, envergado em simetria.

meu tempo podem ser coleções comuns
como vinis empoeirados,
promoções de salgadinho,
pontas de lápis, papéis.

desde que tão bem-guardadas,
lembresquecidas
como os entres, os desiguais, os desusos,
em que a sutileza impera e desarma mas
pungentes que são, não perdoam.

de uma noite de abril

ela ri como deve dançar (suponho): cheia de si.
a ela desfio teoremas de vida que arremata, tenaz:
“nega acertos de uma vida tão dual!”

liquefaz meus misterinhos e me esbofeteia a cara;
me ensina: tampouco é original acreditar no erro;
rebato com meu silêncio clamando por um carinho

desponta cumplicidade e extravasa e finjo
desperceber o esboço de nós;
é croqui, desenho atravancado.

Monday, April 16, 2012

'sampa'

só me aconselham a sair dessa cidade
eu finco o pé e finjo não te ter saudade
digo que o certo é vaguear enquanto posso
e a multidão me acalenta

e digo e volto pro calor do teu regaço
na pouca fé restante nessa parceria
no sono meu desejo errante se vicia
e a prontidão me atormenta

e te assemelhas em virtude injuriada
à retidão da fumaça que me alimenta
e é por isso que vagueio e só tropeço
na mansidão que alardeia enquanto arde

ps: essa é uma letra de música que fiz pra uma amiga musicar!

Tuesday, April 10, 2012

(sem título)

detesto acordar e ver seus cabelos brancos.
detesto porque me lembram:
tempo é resoluto e impiedoso
não fui ensinada
velórios
amores
auroras

detesto seus cabelos brancos
dizem
coração despedaçado não se cura
até o fim há novidade
(desespera-me)
nada permanece

e é por isso
que durmo tanto pelas manhãs.

seus cabelos dizem cabelos brancos
e ainda não sei dizer que te amo.

Friday, March 02, 2012

azulejo

azulejo é um céu longínquo,
é o pássaro que ri no gorjeio hábil.
pode ser apelido carinhoso de banzo
vermelho, preto,
negro, índio,

azulejo é rastro e cheio
da incertitude é mestre.

azulejo reina com mastro e véu
e é café num copo sujo.
é sempre sempre intimidade
e também por isso sufoca:
azulejo encrustra.

azulejo pode ser
carrinho de bebê ao sol,
meneio de namorada
e seu sabor quando lento.

azulejo é todo-somente sublime
corpo em profunda terra
ou não é.

Sunday, February 12, 2012

da fruição


durmo, acordo e
te beijo
nessa ordem:
em fogo e paina
a vida flui.

não sonho e não
se inundam meus olhos quando
te sinto os lábios nos meus:
em febre e letargia
a vida paira.
em café, sons, pudores.
acordo em sebo e não é teu corpo
não é teu corpo em meu tato e
sei numa virada brusca:
é
afogar e logo
a vida plana.

movimento-me
por me saber tua
numa desordem qualquer
logro-te um afago:
a vida flui.

Tuesday, February 07, 2012

da vida gentil: segundos de menino na rua

o menino de uniforme escolar pergunta por que o violinista toca na rua; o pequeno corpo do menino conduzido pela mãe com precisão, o pescoço insistindo na direção do estridente que inundava também os meus ouvidos. páram no cruzamento.
- para ganhar dinheiro, responde a mãe.
o menino aceita: é desfeito o absurdo do cenário. há motivo e razão e, dessa feita, harmonia. ele atenta ao semáforo de pedestres e prepara o corpo para o impulso. atravessará à minha frente quando da luz verde, segurando obstinado sua mochila de rodinhas.

Friday, December 30, 2011

descompasso

ele sempre foi delicadíssimo
e praticante de triathlon
numa prova ousada
jogou-se de helicóptero mais de uma vez
caiu no mar em pose de cinema: junto com o outro
que, braços em concha, o preparava para recebê-lo
e eu soube em sonho que se receberam, na lentidão do sob a água
emergiram e continuaram

e como sempre é quando
quebra-se o ritmo quando
não se reconhece a mudança do em-torno
quando emergiram e continuaram
machucaram calcanhares

Sunday, November 27, 2011

breve ensaio sobre as estações (iii)

outono

não se sabe que é outono olhando pro céu; no outono a gente olha pra dentro como quem olha pro chão pra não tropeçar. não tem encontro, não tem susto, não tem paixão. outono é vento e vento e vento e tempo do prazer de pisar em folhas secas. é vernal o prazer fugidio e sutil porque suspenso e portanto enganador: transmutar volatilidade em permanência não é justo. e por isso a ventania.

expiração

'qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura'.
guimarães rosa

é no seu abraço que eu sou um pouquinho mais sã,
quando sinto sua pele dar alento à loucura.
é seu corpo todo que me benze, me dá febre curadoura
e me restaura em graça, riso e paz.
é seu sorriso que me oferece mais
confiança no mundo que ancora
minha coragem rainha,
descoberta e fugidia
num tempo de soluço
é no seu braço meu reino destemido,

e em fé e força esgarço, sem pudor nem ranço de cansaço,
a bainha da sua roupa em que cravo
minh'alma e minhas unhas, quando no seu abraço.

Saturday, November 05, 2011

benvinda

o que denuncia um novo amor não é um novo orgasmo (isso é transa casual), um novo velho mesmo jeito de atender ao telefone (pode ser timidez), nem as tão batidas borboletas no estômago (é claro que las hay, pero desde a pré-escola). o que denuncia um novo amor é aprender um novo jeito, o jeito dela, de arrumar a cama. e tomar gosto. e zelar pela cama arrumada, vez ou outra, antes de sair.

olavo bilac

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
e triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
e alma de sonhos povoada eu tinha.

E parámos de súbito na estrada
da vida: longos anos, presa à minha
a tua mão, a vista deslumbrada
tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida,
nem o pranto os teus olhos humedece,
nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face e tremo,
vendo o teu vulto que desaparece
na extrema curva do caminho extremo.

Thursday, October 13, 2011

um dia

meu amor, eu quero ao seu lado
um dia amarelo
um dia desses em que a luz do sol já nos amanhece amarela
e logo em seguida o prédio que espio da janela se amarela
amarelo é o menino que grita sob a mangueira
e as águas que ela esguicha só refletem douradas o amarelo
e é assim um dia de carinho confortável
o amarelo que acarinha as plantas do parapeito da sua janela
que tombam e se esticam e esgueiram todas pra espiar
essa sua toda luz que também estica ressoa e escorre
e preenche de amarelo meus olhos fechados e minha rouquidão
é amarela minha ausência de voz
qualquer movimento doce e cheio da mais sincereza possível
é inteiro amarelo um dia assim
que, infindo, não tem meio nem duração:
suspende-se e fica pelo tempo que for.

Monday, August 08, 2011

mourning

enquanto ouço confissões a olhos brilhantes
de sonhos reveladores
transbordantes d'alento
fico eu cá com minh'aflição:
sonho elefantes rajados de rosa
que esguicham água em silêncio
e nem sei se me respingo;
não porque acordo, mas porque decorre
sono pesado e sem sonhos,
e nada recordo ao amanhecer.

Sunday, July 24, 2011

domingo no parque

um bocejo se confunde com um piscar d'olhos
e cores me impressionam
(sedutores artifícios):

fogos
arco-íris casual sob medida a meus olhos
filmes fotográficos para derreter o céu
(o sol ofusca e meus óculos dão ao dia ares de praia)

cuja brisa me traz
o sol nos meus cabelos
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . o sol me faz mais loira ternamente mais loira
e a brisa é mais um bocejo.

Tuesday, July 19, 2011

corpo de mulher

fitei a parede e não vi mais nada. seu cheiro é áspero, ele dissera, suas mãos em mim e eu sem saber. havia trincos na parede, resquício de umidade (são sempre as outras mesmas histórias acumuladas), e os traços imprevistos rodavam ao meu redor. nós dois no breu e tudo girava. me desorientei pelo seu suor e recebi toda a agressão que contém um corpo de homem que é pele e sangue e tanto mais que não me permitem tentar nomear.


.em busca de outra semântica.

Sunday, June 19, 2011

citadina

há manchas no meu corpo que seriam julgadas
tamanha a lascívia, tamanho o ocaso,
tamanha a luxúria que evocam e contêm

com isso que chamam pó compacto
então as cubro
com lenço e camisa e casaco e calça e renda
e pó

que em nada compactua com meus desejos de mulher.

nessa multidão que nada me oferece além de roçares

escondo e camuflo e me enquadro mas, ah!,
há sempre o indisfarçável e eu rio
rio fluido sob o sol que desembaraça tantos encontros-presentes.

Thursday, June 16, 2011

camomila

é hoje que eu durmo bem, meu amor,
apesar da sua ausência.

Wednesday, June 08, 2011

retratos urbanos - a mulher do despachante

cruzou o meu caminho – e não o contrário – uma mulher de cabelos ressecados, talvez com corte, talvez ressecados apesar da devoção e do cuidado, talvez pelo tempo seco que vem com a chegada do outono, ou pelo uso equivocado de produtos de má qualidade que são o que ela pode comprar. ela, que trabalha num despachante, e antes das 16:00 tinha ainda um copo cheio de café ao seu lado. um copo americano, de bar, o mesmo que, aposto, ela enche de cerveja aos finais de semana. não reparei se fumava, talvez sim, para compor a personagem perfeita. talvez não. talvez tenha filhos, e um deles estude no exterior. talvez o marido – ou a amante – lhe presenteie com jóias vez ou outra. talvez ela já tenha visto um jogo do corinthians no estádio, talvez lido um romance do paulo coelho ou do machado de assis. talvez ela nutra uma paixão por comida asiática, talvez cozinhe muito durante seu final-de-semana para congelar parte da comida para comer durante a semana. talvez já tenha experimentado cocaína, tomado leite com manga, feito uma cirurgia de alto risco, visto o mar. cruzou o meu caminho, ela, que passa dos trinta e talvez beire os quarenta anos, uma pele amorenada, cruzou, ela, porque me despertou vontade de saber tanto a seu respeito. cruzou o meu caminho, e não contrário, porque enquanto passava eu defronte o despachante onde trabalha – desde quando? –, ela sequer desviou os olhos da tela do computador.

Sunday, May 22, 2011

uma bebida mais forte

porque essa insistência em vestígios de amor numa relação tão violenta. porque os pés gelados num dia frio, zanzando pela casa, num quase automatismo de auto-flagelo. porque os músculos doloridos de uma noite sem memórias. porque as brechas, as frestras, o intransponível, o indizível, o indecifrável e a espreita. porque o erro, e só ele, é que faz sentido, confidenciaram-me. agarrei-me a essa máxima e não solto até o soluço passar.

Thursday, May 19, 2011

da vista da minha janela

a vista da janela do meu quarto é o muro do quintal. entre o muro e a minha janela fica uma máquina de ginástica que meu pai comprou e enferrujou, de vez em quando uma bicicleta encostada, de vez em quando meu cachorro e quando eu chamo ele pela janela ele abana o rabo e faz aquele chorinho de cachorro porque ele quer chegar mais perto de mim mas não pode por causa da máquina de ginástica enferrujada, de vez em quando da bicicleta e das grades e da tela que tem na minha janela, então mesmo que meu cachorro conseguisse colocar suas duas patinhas na beirada da janela ele não ia conseguir me dar nem uma lambidinha porque tem uma tela pra proteger de pernilongos mas ela não adianta nada porque minha casa é infestada de pernilongos então na verdade essa tela não serve pra nada e ainda por cima não deixa meu cachorro me dar uma lambidinha de carinho.

Sunday, May 08, 2011

em sagrada festa

os anjos que me circundam (eu sei)
são anjos desfigurados com cabelos cinzentos e
asas (como devem tê-las os anjos).
são fortes e sorriem e dançam e eu também sei
que se alegram quando me ilumino.

digo, por isso às vezes
me brotam lágrimas e falta o ar
- porque esses anjos querem
(esquecem sua condição celestial)
brindar a vida e no regozijo-tão se excedem
e vêm a mim todos alegres pelo tempo que há.

Thursday, April 14, 2011

em suspiro

pois não é valsa nem bolero
eu não sei seu ritmo
não te acompanho
não gingo não sambo não sei como
pegar na sua mão
te mostrar uma lua que não seja óbvia
eu não sei ousar te dizer da lua
e não sei te me mostrar em ternura e desejo porque
é você que eu quero enluarar e só.

Tuesday, April 05, 2011

mal-me-quer

eu não derramei uma lágrima.

não derramei uma lágrima e não engoli nenhum choro
desse amor insosso que você me ofereceu
não ficou nem desgosto

Saturday, April 02, 2011

(outra) escola de belas-artes

(livre versão do poema de jacques prévert, que reproduzo em seguida)

usando de cesta o chapéu,
o pai pega uma bolinha de papel
e (não é nem por magia)
a faz mergulhar na bacia
e as crianças desconfiam
surge destemida
multicolorida
a grande flor japonesa
o nenúfar que admiram
por sua instantânea beleza
e silenciam
nunca, nunca, na memória
essa flor há de murchar
essa lírica água-flor
feita para eles
num minuto de cor
diante deles.

-------------------
original:

"L'école des beaux-arts", Jacques Prévert

Dans une boîte de paille tressée

Le père choisit une petite boule de papier
Et il la jette
Dans la cuvette
Devant ses enfants intrigués
Surgit alors
Multicolore
La grande fleur japonaise
Le nénuphar instantané
Et les enfants se taisent
Émerveillés
Jamais plus tard dans leur souvenir
Cette fleur ne pourra se faner
Cette fleur subite
Faite pour eux
À la minute
Devant eux.

Tuesday, March 29, 2011

jobiniana

porque o amor é descrente e a literatura quase infinita
faço ao menos um poema por dia e me apaixono
duas ou três ou cinco vezes na semana.

aos amores, não há dedicatória: imortalizo-os.

isso de mim exige renúncia e tédio
que remedio alternando vulgaridade, excessos,
e um meticuloso gestual cúmplice em vingar cada sonho que cai por [terra.

Sunday, March 27, 2011

breve ensaio sobre as estações (ii)

inverno


o inverno é o desafio à tranquilidade d'alma. é o tempo da lentidão e das intensas solidões todas em rotações por minuto sentidas. na europa, o inverno é o encontro consigo em xícaras de chá; nos trópicos, é chuva que encharca os destemidos e assusta os precavidos – a ambos angustia, e há todos os truques e práticas no anseio pela calmaria (eu, particularmente, sou adepta da queima de uma folha do ramo de palmeira bento, pedindo proteção à santa clara quando a tempestade desespera).

Thursday, March 24, 2011

breve ensaio sobre as estações (i)

verão

o verão nada mais é que a letargia. não; o verão é o êxtase, a catarse, a nudez em conforto porque quente. o verão não são gotas de suor; o verão é o sal que marca a roupa, é a boca seca e corpos que entre si deslizam no amalgamado de cheiro denso. o verão é a estação do sexo mais feroz e sensual, é a estação do vigor corporal que garante a tranqüilidade d'alma – porquanto não a contém.

Friday, March 18, 2011

coração bobo

foi um deslize sedutor.

um salto no raciocínio
aparentemente condenável mas
encantadoramente retórico quando se trata de assuntos do coração.

e eu rasguei meu peito
fazendo duma acrobacia barata
olhos brilhantes pelo salto mortal

Sunday, March 13, 2011

not supposed to hit

ela saiu para o trabalho não sem antes carregar na maquiagem um pouco mais do que o costume. pela noite indormida, o corpo já começava a pedir descanso antes das oito da manhã. um banho ora quente ora frio servira para dar realce e acalmar um pouco os hematomas recentes (a água sempre traz as dores pra superfície do corpo, e um roxo se espalhando na pele permite maquiar de dor-de-pancada o choro de sufoco, humilhação e desespero). antes de sair, passou café e alisou a gola daquele colarinho, a camisa impecável num cabide pendurado no puxador do guarda-roupas. tomou uma xícara que caiu de golpe no estômago em jejum. é que se maltratar também é bom, às vezes, quando a encruzilhada inexiste e ser cúmplice na agressão é a única possibilidade. saiu sem dizer palavra; ele folheava o jornal sem reclamar do café forte, a camisa agora ainda semi-abotoada. quando girou a chave já do lado de fora do apartamento, cravou fundo a unha do indicador direito nas costas da mão esquerda: a marca não a deixaria esquecer de pegar as roupas na lavanderia depois do expediente. sentiu o café revirar no estômago, enquanto descia as escadas do prédio: dali dois dias seriam anfitriões no jantar anual da família, e ela sequer tinha pensado no quê servir como entrada. tateou a bolsa, abriu o carro, revirou a pasta com as anotações para a reunião de apresentação dos primeiros resultados que presidiria assim que vencesse o trânsito da cidade. digitou 'bom dia. amo você' no celular, enviou pra filha que mora longe, e deu a partida.

imagem daqui

Saturday, March 05, 2011

um retrato a uma estrangeira

eu moro num país onde as pessoas morrem
de fome
de tiro à queima-roupa
de amores e ciúme
de acidente de trânsito

nunca ninguém morreu de fome nos meus braços.

soube de quem morreu depois de jogar futebol;
antes de nascer;
vi quem morreu de desistência do corpo
e de surpresa, também
vi quem morreu despencando
e vi corpos bonitos de mortos serenos

eu vi quem nasceu cabeluda do ventre da viúva
e quem renasceu encovada de força antes dos trinta

eu li cantos sobre cabelos de suicidas no rio,
esculachos quaisquer de poetas sobre o verdejar desses fios
mas antes disso

eu fui à missa de sétimo dia de uma suicida
que me sorria sempre quando confidenciávamos amores errados
e ainda antes disso

eu perdi a voz em batalhas esganiçadas

e me amarraram por qualquer descrença e me deturparam
a voz e a força e o delinear
e então sem me dar conta

eu passei a freqüentar igrejas e velórios
a sorrir mais, conversar com anjos
e ler notícias no jornal sobre gente na rua
com fome
com sangue e com morte
insistências fronteiriças
nos nossos países.

Wednesday, March 02, 2011

antielegia

eu te conquistaria
num piscar de olhos você sabe
já ter cedido aos meus encantos
quando quisesse
iria te despir tão lentamente
como da primeira vez

até o amanhecer
quando te levei café na cama
você sabe, eu te conquistaria
nos ovos mexidos,
no suco de laranja fresco,
nos horóscopos e na costumeira divisão dos cadernos do jornal

eu te conquistaria e é leve
certo e confortável, eu sei,
você me dedica seu amor mais sincero

eu te conquistaria e você
você virou os olhos vestida e com as pernas cruzadas
não como (guardo na memória) nua quando empantanada em meu gosto
você se levantou e deu as costas
e abandonou a cadeira enviesada
e você partiu de bicicleta com os cabelos bagunçados.

Monday, February 28, 2011

cosmológica

eu não sei qual é o gosto de canjica.
eu não sei que gosto tem canjica porque da primeira vez que comi canjica sentia só
gosto
de velório
de susto
de morte

eu não sei do gosto da canjica
como não sei dos seus sonhos e do futuro do mundo
porque os seus sonhos, quando a mim rascunhados, eram só silêncio
e o mundo me insiste em dissimular e se esquecer

por isso procuro
(e permito olhos brilhando)

danças em grupos em roda
histórias em perna-de-índio
chá ou café uma ou três vezes ao dia
colecionar bandeiras e,

quando não chove,
dependurar algumas na janela.

Thursday, December 23, 2010

febril

a poesia?
vai tão encrustrada em mim
(você que a assim deixou)
que já não a percebo,
os dias passam conta-goteando. desde que você partiu.

quer dizer
– você sabe porque as noites tem sido tão claras?
eu não prego o olho e culpo a lua
e pode chover e a lua pode
se nublar que continua
o clarão e o barulho da chuva no telhado
parece seu sibilo
eu quase arrepio
inspiro e seguro o lençol sob o queixo
embolo meus pés no cobertor
e encarinho-me o rosto antes do espreguiço.

expiro e você é quase um holofote
e não sinto meu estômago porque em sonho (quando há) seu perfume me
[enche d'água e me cega e acordo e tateio
e verto em mim o que há na mesa de cabeceira e me resfrio

e não há barulho que distraia
silêncio que entorpeça
palavra que instigue ou aconchegue
tanto quanto as suas doçuras irreveláveis.

então sigo meu dia e pinto e escrevo
pra você escrevo uma confusão de perfumes
e tento pintar outro silêncio
que não aquele seu de dizer amores e preencher
mas o silêncio que pinto não te tem e não me tem e não há cores e só há água
há água e desidratração e me lembro
– não se esqueça de respirar
, e respiro

mas se respiro me inflo de cores que só a nós pertenciam,
e eu não sei tê-las sem você. então
respiro e sou só edema. não há extravasares, não há quem contenha. me
[inflo.
e à noite choro, e a lua clara holofote é tanta e insiste
e machuca meus olhos já tão secos. e sou toda secura, então,
também em garganta e suor (que seca o dentro) e coração cansado e me
[esqueço das outras partes do corpo

deito exausta e se fecho os olhos ardem
quem dera de tesão quem dera
de choro ou cansaço. ardem de não saber mais nosso encontro, como arde
[meu dorso todo de não saber mais seu toque
e me assombra seu sorriso e preciso segurar minha cabeça com as mãos
e não respirar
e você é toda-beleza e com ternura me pergunta
e me assombra seu rosto seus músculos suas contrações sua pergunta
me assombra sua pergunta
de como anda a poesia.

Monday, December 20, 2010

poema de percepção do luto

Num rascunho de poema
descubro: só sertão em mim habita
desde o ano dos velórios.

Não são temas de esconjuro,
linhas tortas ou cascatas
de infatigados dramas, não.
São escritos circulares
insustentáveis pois sem centro;
é quase desespero
contido
pois não é.

Nem é só tristeza
nem amargor nem cansaço.
É insustentável peso sem
o reboque da leveza.

Tuesday, December 14, 2010

uma elaboração de sentires

cada vez que eu tomo um banho, sinto os cheiros de costume, eu me lembro de você. a sua ausência durou o tempo exato de um pote de condicionador. o tempo exato de experimentar outra regularidade, outro cheiro. outra reação e um diferente caimento dos meus cabelos depois de banhos extraordinários. com outros ritmos, outros cheiros, outras aflições e um risco diferente marcando o vapor no espelho.

quando eu era criança, acumulava desenhos nos espelhos e nos vidros embaçados. no banheiro, depois do banho, e dentro do carro, quando chovia. eu sempre percebia que os desenhos nunca sumiam. a marca leve de cada um voltava com o novo embaçado, e eu, temperamental, oscilava sempre entre reforçar os traços muitíssimo bem-acabados ou dedicar-me a novas expressões.

hoje meu banheiro guarda em relicário um mosaico. traços que se justapõem, às vezes se sobrepõem, algumas vezes uma emenda faz surgir um novo desenho que eu só reparo muito tempo depois. me orgulho do meu mosaico; se há desbotamentos, superposições, desrespeitos estéticos e repetições, sei que tudo aparentemente opaco e embaraçado tem seu lugar, e são esses lugares os mais nobres. todos, cada um. há quem diga que é impressionista demais, esse meu mosaico, que só a mim me diz respeito e pouco comunica ao mundo. pode ser. me delicio em saber da minha história, e só eu, e só dela.

bicicleta

a bicicleta é a brincadeira mais libertadora. claro, quando seguidas as regras de como deve ser. não pode ter aquelas rodinhas, aquilo é pior que ensaio. andar de bicicleta é mais que improviso. tudo bem, tudo bem, ninguém nasce sabendo improvisar. o improviso só é bom depois de corpo e alma em exato equilíbrio entre condicionamento e liberdade. e não é ensaio que proporciona isso, não: é mergulhar, se empantanar em experiência. e é por isso (eu sei) que tem muito adulto bicicletador por aí. mas não basta vontade, não. tem que abrir, rasgar o coração.

Thursday, December 09, 2010

amarelinha

amarelinha é das brincadeiras mais gostosas: dá pra brincar sozinho, junto, misturado, competindo, ajudando. quando eu era criança, era difícil acertar a pedrinha nas casas mais longes (do sete em diante), então todo mundo juntava os pés, assim, e fazia casinha, que é como se fosse um gol (mas não é gol porque não tem trave nem rede, é só o pé, mesmo), pra segurar a pedrinha que a gente jogava (porque criança não sabe medir força, né, e as casas das amarelinhas também nem são tão grandes assim, então é fácil mesmo errar). e aí era só ir pulando, equilibrando, jogando a pedra e pegando, de um jeito tão ritmado que nem tem como confundir a ordem do que fazer.

Sunday, November 28, 2010

memórias, as futuras XXVII

a cidade do meu coração tem rios que chegam caudalosos e, lamacentos que se tornam, perdem o movimento. O empantanamento não sei dizer por donde ocorre; talvez por adensamentos acompanhados (é a tendência) de inação. inação quer pelo encanto, quer pelo sufocamento. mas arrisco dizer: tal empantanamento não é mais que circunstancial. acontece conforme as acontecenças - habitantes do meu coração - são nomeados. sim, nesse vai-e-vem:
1- quando os acontecimentos (as acontecenças, prefiro) sabem-se povo da cidade do meu coração e
2- quando a eles dá-se nomes não-inventados, em tentativa (e sob argumento) de comunicação. (porque os adensamentos são agora feitos de gesso)

mas felizmente tem-se que: o membro engessado coça, exige atenção. o percurso pode ser árduo para recuperação do vigor, do viço, da forma. exaurido em disciplina, o coração se orgulha quando de novo se movimenta!

- [isso deve ter efeito de travessão, entre linhas]

mas logo e de novo vêm os nomes e lá vamos tornar pântano novamente o membro-rio então agitado. como romper com esse ciclo vicioso? abster-se de nomear não adianta (há de se prezar pela comunicação). tampouco mudar os nomes (é trocar seis por meia-dúzia). não há como quebrar o ciclo?

(sem título por enquanto)

[a vida] quer da gente é coragem.
guimarães rosa
Não se acovarde

Não há tempo manso
ou espera que cure.

Há furacões e seus centros,
olhos de tigre cuja
menina é cardiopata
(não há ritmo)
Há a exigência da coragem.

Mais nada.

Thursday, November 04, 2010

corazón

tirei o relógio de parede que ficava na sala de casa. dependurei, tirei as pilhas e o abandonei em cima da pilha de revistas (intocadas há semanas). podia ser o seu cheiro, ou outro, tanto faz, que o tic-tac do relógio me trouxesse. mas não traz mais nada. como pode um objeto ter ou não ter história, aflorar-nos tanto na memória? tirei também o pó de um ou dois dias acumulado nos santos que circundavam meu cantinho espiritual. suspirei, sim, não tem como abrir o coração sem suspirar. às vezes abre-se sem sequer a intenção de vasculhar, mas os suspiros afloram e se fosse diagnosticar eu diria: cardiopatia grave, porque o coração retumba e ecoa, e a respiração muda (arfante ou contida, passa-se a percebê-la, e respiração é dessas coisas que quando se percebe é porque chama a atenção, e se chama atenção é porque algo de extraordinário há, e se é extraordinário pode bem ser errado, e aí nos preocupamos, quando é com alguém querido, e suspiramos, quando é dentro da gente, mesmo, porque o suspiro é o diagnóstico que o próprio coração dá à cardiopatia). virei-me, abri as cortinas, não teve brisa a brindar-me: é verão neste hemisfério, e as noites cada vez mais densas.

Wednesday, November 03, 2010

abóboras

com esse post inauguro uma nova sessão aqui no blog: receitas! (que eu faço e testo antes, pra ver se fica gostoso)

a de hoje então é: macarrão com molho branco, abóbora e champignom.

fazer o macarrão todo mundo sabe, né? ferver a água, colocar sal, o macarrão que você preferir e - isso é o mais importante pra toda receita de macarrão que se preze! - prestar atenção no tempo de cottura, que é pro macarrão não ficar nem muito duro nem muito mole, mas al dente!

numa panela separada, colocar alho, cebola, refogar por um tempo até ficar aquele cheiro bom, e douradinho, e jogar as abóboras já picadas (em pedaços grandes). colocar um pouco de sal.

o molho branco tem vários modos de fazer. dá pra fazer com creme de leite, mas eu prefiro sem, que fica mais levinho. então é só colocar um pouco de manteiga numa outra panela, deixar derreter. num copo, misturar leite com maizena, misturar bem. jogar um pouco de leite (sem maizena) na panela, e ir jogando aos poucos o leite com maizena, sempre mexendo bastante, que é pro molho engrossar. aí quando der o ponto que você gosta (mais grosso ou mais ralo), é só jogar tudo o que tinha na panela com a abóbora nessa outra panela.

nesse meio tempo, você mesmo (ou alguém, já que é gostoso também cozinhar junto com alguém) cortou os champignoms, então é só jogá-los na panela também. deixar o fogo ainda um pouquinho ligado, pra tudo ficar mais curtido.

e pronto! é só desligar e misturar com o macarrão. :)

uma dica é ralar um pouco de noz moscada por cima do molho, e dar uma boa misturada, antes de servir (depois de ter desligado o fogo). noz moscada é um dos meus temperos favoritos, fica bom em tudo! mas tem que por só um pouquinho, porque é forte. colocar queijo parmesão ralado por cima também cai muito bem!

Tuesday, October 26, 2010

réquiem

que me escrevas cartas de amor com toda a freqüência possível
mas não a freqüência exata que as exima de me surpreender.

que me consoles e carregues e acolhas
sob chuva ou arco-íris
que me pintes
(ar de rua, suor, um carinho no enlace dos dedos
e penumbra, dança, e insustentável força e meneios)
em cores sem nome

e me beijes, que me beijes como a única mulher a ti jamais entregue
conhecida em alma

e teu corpo me sonha.

e que, acima de tudo, meu amor,
saibas quando calar.

Monday, October 18, 2010

memórias, as futuras I

a cidade do meu jovem coração foi erguida em torno de duas ruas principais (ruas, e não avenidas, que é tudo muito delicado). não foi nada planejada, mas tampouco beira o caos; é uma ocupação sentimental, sem desespero, com alguma calma e permissão para um ou outro pouso provisório até achar a esquina ideal para se aconchegar. foi então quase natural fazer morada ali, entre a rua dos suspiros e a alameda da memória. com vista pro mar, nenhum luxo. tem esgoto a céu aberto logo ali em frente, e uns ninhos de passarinho que não dão sossego. mas o mar tem sereias que cantam na lua cheia, os vizinhos cozinham em uníssono aos domingos, as árvores estão ora floridas ora com seus galhos todos à mostra, corajosas que são. eu não durmo sozinha e a família está por perto.

Sunday, October 17, 2010

solidão, palavra

é madrugada quente e abafada aqui na cidade. não tenho uma janela alta pra me perder na luz dos faróis, enebriada com seu cheiro. o calor nãoé tanto a ponto de pedir um banho frio, não, mas é isso que me proponho. banho frio, água na cabeça, passadas as horas difíceis do cair da tarde. banho frio que é pro calor escorrer pescoço abaixo e empoçar nos pés, que é pra ver se você também sai um pouquinho só um pouquinho de mim, e toma forma de alguma outra coisa que não a dessa solidão ingrata. e aí nem adianta, porque é um tal de lembranças e pessoas e memórias e saudades que me compõem... por quê é que as saudades, quando vêm, embolam tudo e se manifestam no quente da lágrima que a gente nem sabe o dono?

Thursday, October 07, 2010

memórias IV

não conheci minha mãe. e aí cresci e encasquetei que era filho de sereia. embora minha respiração não fosse de bolhas de sabão (como devia ser a respiração dos filhos de sereia), e meu andar não fosse bailarinesco como devia ser o andar dos filhos de sereia, minhas sardas e meus os olhos cor de mar, que a vó me explicou que morava um mar dentro de mim, me davam alento: era claro que eu era filho de sereia, dessas que cantam bonito, namoram os pescadores e eles inventam histórias (eu nunca precisei pegar um peixe grande pra impressionar). um dia, ainda nem era tão crescido, mas andava sozinho sem desequilibrar, encarei o mar pela primeira vez. quando a onda veio mansa tocar meus pés e me convidar, entrei, avisando: voltaria quando escurecesse, que meu coração não era daquele mundo não.

Monday, October 04, 2010

uma imagem de descanso em companhia

para ler ouvindo 'chinese', de lily allen, ou 'vitoriosa', de ivan lins

espero,
esse vazio-todo-angústia que ressurge,
espero fazer dele castelo de cartas
prestes a ser brindado, leve assim,
com o sopro de criança que se mescla com riso
de saber-se senhora encantada
entre a cria e o novo vazio
já preparado, em magia e vontade
de ousar outros equilíbrios que sustentem, por fim,
uma folhinha verde, colhida ali onde começa a grama, no fim da praia, perto da rede
[onde te ouço ressonar, trono da formiga premiada, que com toda
[a delicadeza de mãos tão precisas, do topo do mundo cuidará,
coroando de novo nosso castelo.

Saturday, September 25, 2010

domingo

vem cá,
me diz seu amor
em silêncio de pescaria.

Friday, September 24, 2010

registros

Tlect. e é o momento em que do movimento conquista-se
a precisão estática
MAS
pode ser uma avalanche de palavras - captação de estado de psiqué (por definição não estático
MAS
é que é preciso alguma secura para a imagem
não virar líquida )
OU
são líquidos ou quase isso
com suas tão-duas densidades, e as possíveis misturas e claras fronteiras
da disposição
OU
da indisposição em manter sistemática coerência
oriunda/que reverbera em/ em relação dialética com
departições, separações espaciais ou (assim prefiro) temporais.



(não consigo evitar variações sobre o mesmo tema)

Wednesday, September 22, 2010

cochilo no frio

clareia-se de luz vindoura não sei d'onde o cômodo mais úmido que o normal. respiro e é doloroso acordar, como o é em toda despedida travestida de ânsia adolescente por ritmo. há que se ouvir o corpo, penso, esfrego os olhos e me levanto com cuidado, retorcendo as costas. talvez já seja tarde demais, mas - num átimo minha sensatez de tempo-espaço toma as rédeas e me tranqüiliza: ainda é cedo. dá pra voltar a dormir e arriscar um sonho.

Tuesday, September 14, 2010

memórias III

não tenho nenhum apreço por este apartamento, te digo. minhas memórias estão espalhadas e não é na outra casa nem nas salas de cinema, bibliotecas, parques, aviões. minhas memórias estão nas folhas que caem nas praças marginais das cidades, as que têm banco de concreto e mato e às vezes um pé de tênis sem cadarço ao lado de uma garrafa, ou uma criança que corre. estão em colagens que passam desapercebidas nos centros da cidade, nos rabiscos nas últimas folhas dos cadernos adolescentes; algumas estão em portas de banheiro público, um pouquinho numa rodoviária pré-feriado, aí sim. na rua de uma cidade do interior com o sol amanhecendo num domingo dia-das-mães, eu muito jovem, reconhecendo a cidade, insone. minhas memórias estão na retina de um senhor simpático com sotaque argentino que me diz galanteios e eu, menina de tudo, enrubesço. no café fraco da minha avó, misturado com cheiro de queijo meia-cura e o sotaque que me traz alento e raiz. minhas memórias estão na cicatriz que marca o dorso daquela mulher, do umbigo até quase a lateral do seio, e nas coisas bonitas que me dissera. minhas memórias não são palavras, mas o que as palavras fizeram em mim. minhas memórias pairam, assim. adoçam um bom dia. são o ramo bento prestes a ser queimado pra santa bárbara proteger a casa quando chove tempestade. minhas memórias não cabem em mim, e é também por isso, um pouco por isso, que as compartilho.

memórias II

eu gosto muito de xadrez, mas odiava um xadrez desarmonioso que minha irmã sempre usava. acho que era bordô. ou lilás, mas sem charme algum. vestia sempre e ia regar as plantas, mas o meu cacto ela regava só de vez em quando, como eu tinha ensinado, que é pra ele não acumular um monte de água e morrer. eu gostava do cacto no meu quarto, tinha um cantinho pra ele lá, todo especial. mas quando ele começava envergar implorando pela janela eu deixava ele uns dias no quintal tomando um solzinho. minha mãe me ensinou o nome desse arrastamento que é: fototropismo, mas eu acho que era agonia. eu, se fico uns dias sem ver sol, me arrasto pela casa e perco a vontade de sair. evito as janelas. mas não sempre. se vejo alguém entrar corado, fico envergonhada, corro me pintar e finjo. desço e subo, pela escada, algumas vezes. se tenho meus óculos escuros, dou uma voltinha pelo bairro, sim, cumprimento quem passa, quando subo de novo preciso me sentar que meu coração acelera. são muitos os lances de escada, e muito a vida propõe. mas olhe, quando você for sair, encoste a porta. já já os mais novos levantam e não quero que peguem friagem.

memórias I

minhas memórias são retalhadas. eu nunca sofri um acidente de carro e tenho cicatrizes do tamanho de um casco de jabuti. jamais precisei esfregar o pára-choque do carro pra limpar vestígios de sangue de um atropelamento ocasional. mas minhas roupas são impregnadas de respingos amarronzados. eu não sei a máquina de lavar ainda está enferrujada, talvez seja isso, ou o varal. não me lembro da casa onde passei a infância, mas tenho cá comigo uma primeira vez de lágrimas rolando, meus primos ao meu redor. não tinha sangue nem pancada: era um passarinho-meio-ovo que caíra com a bola que eu não segurei no gol. e ficou ali espatifado, e nós todos tão crianças com aquela dor tão imensa e a culpa pelo passarinho-meio-ainda-ovo no chão. porque ele ainda não sabia voar. me lembro também de um hospital, muitos anos depois, uns cabelos brancos e a falta de ar que eu disfarçava quando entrava e dizia o 'bom dia' mais alegre que conseguia. morria um pouquinho sempre que punha os pés naquela branquidão, e quando percebi que o tom era igualzinho ao de casca de ovo, vomitei.

Sunday, August 29, 2010

um carinho

- é como uma caixinha de música, ela poderia ter dito, rodopiando displicentemente o indicador, num movimento circular que não se concluía com precisão e se alongava num carinho no meu antebraço.
- pode ser a valsa mais conhecida; se tocada numa caixinha de música, comove e encanta sem precedentes.
eu poderia ter fechado os olhos, então, e roçado as costas da minha mão bem de leve na penugem de seu rosto. e ouviria, num suspiro:
você? ué, você é minha caixinha de música, ou minha valsa. é tanto que tanto faz.
e estalaria um beijo.

Tuesday, August 24, 2010

retratos possíveis de um par de mãos

'mas essa gente aí, hein? como é que faz?'
adoniran barbosa, despejo na favela

eu gosto da maneira como as cenouras chegam fatiadas ao meu prato. eu não domino a arte de fatiá-las desse jeito; parecem maiores do que uma rodela de cenoura pode ser; maiores e mais saborosas.
mas eu não sei nada das mãos que as fatiaram. não sei se gostam de cenoura, se já almoçaram ou se, famintas, petiscam sorrateiras um brócolis dando sopa. não sei de seus planos, se seus filhos já lêem ou se elas já viram o mar. não sei se trabalham aos domingos, se preferem picanha ou feijoada, se assistem a novela das oito passando roupa ou de olho na panela no fogo pro almoço do dia seguinte. não sei se já tiveram que se defender de ameaças violentas; se, descontroladas, tiveram acolhimento; se cuidaram de algum coração em despedaço. não sei se têm rugas de tempo vivido, de acúmulo de sofrimento, de descuido em lavar roupa com pedra-sabão. não sei se essas mãos têm alianças abençoadas de uma união alegre. se o calor delas é cotidianamente compartilhado com o de outro par; e se o par é sempre o mesmo, se o toque é macio embora as mãos sejam ásperas, ávidas por conforto. não sei qual foi a última vez que essas mãos tiveram o cuidado que deveriam ter. sei que, esplendorosamente, cortaram cenouras há algumas horas atrás. mais nada.

Tuesday, August 10, 2010

uma breve história de amores (ou: tempo da delicadeza)

houve um tempo em que eu partia. quase todos os dias, quase sempre à mesma hora, deixava aquele reino tão íntimo e tão compartilhado, para me reinserir no outro cotidiano, igualmente real, que continha tantos sonhos quanto o outro, e assustava um pouco menos.

depois ousei ficar. por uma ou outra hora a mais, desafiar a rotina traçada. varar alguns dias, perder alguma noção do tempo.

foram alguns, esses tempos de ousar ficar. e foram vários os ficares ousados. distintos entre si, sempre repletos de significados (até na ausência de sentido, quando era o desafio do susto do absurdo que eu buscava).

sucedeu-se que agora havia o tempo da dança. da harmonia entre o ficar e o partir. até que... da harmonia fez-se a síncope. e não é a síncope que faz o samba? a dança se encheu de retumbares.

e do meu coração em arritmia, como na falta de ar imediata, faço suspender, até segunda ordem, os toques que enchem d'água atrás dos olhos.
suspendo o sorriso que jogo pro céu quando você me diz amores com seus olhos depois que me beija. fica em suspensão minha entrega. suspensão de suspiro, na calma da memória e do coração.

Sunday, July 11, 2010

luz

quero saber se você vem comigo a não andar e não falar
pablo neruda

também eu silencio quando tu te calas.

antes fosse silêncio cúmplice, amantes em respiração uníssona maior;
não.
é silêncio de assombro pelo descompasso, lamento pelo passado [então
presente, angústia da impossível compreensão (cada passado é [presente - e só presente - para quem o viveu. mais nada).
esse silêncio não corrói nem escorre; paira ensimesmado em sua densidade tão.
é quase óleo. é quase
como o frio quando o corpo toca o lençol: sustenta-se.

esse silêncio não se quebra, meu amor. nesse silêncio adentramos, e dele nos empantanamos, ávidas em prosa e sol, cúmplices em permanência e gratidão.

Monday, June 28, 2010

a paixão doce

ouve.
é o sol
que desponta ali, amanhã,
no sorriso nosso.

Monday, June 14, 2010

desvencilhares

para ler ouvindo, talvez, 'i'll follow the sun', dos beatles.

primeiro foi o cd que - e eu juro não ter tratado mal - deu pra só tocar a faixa 10, cismando no não me leve a mal, embalado por aquela voz doce então metálica e irreconhecível. olhei contra a luz, alguns riscos, nada que outros também não tivessem - eu ouço meus cds até criar sulco. de imediato, baixei as músicas - sabia a ordem das faixas de cor - e gravei de novo. num novo que não caía bem. ficou esquecido, até meu irmão encontrar e perguntar se podia usar numa das suas instalações itinerantes. debaixo da poeira acumulada, vi nele as iniciais dos nossos nomes. já fazia alguns meses, nada caía bem. e não caía mal, também - sequer incomodava. dei um meneio de cabeça, cerrei os olhos. a bicicleta ficou imponente com aqueles brilhantes nas rodas refletindo a luz do sol.

depois foi a experiência do primeiro stencil, numa camiseta branca tão surrada que as duas usávamos pra dormir. ficava ora na casa dela, ora na minha, aquele algodão macio de tanto usar e ser lavado. branco já encardido, o preto do stencil desbotadíssimo, a mescla dos nossos cheiros (que eu pensava) encrustrada. na arrumação da terceira gaveta, sábado à noite, encontrei-a no fundo, amarrotada, cheiro de guardado. joguei na máquina sem me dar conta da calcinha roxa presa no fundo. um novo tom lilás: a camiseta se prendeu - a máquina eu adquirira num rolo havia uma semana, com todos os enroscos a que tinha direito -, meus calcanhares saíram do chão quando me debrucei puxando o trapo. a camiseta em algodão macio se desfez na minha mão esquerda. (o lilás na calcinha desbota cada vez mais, a tinta saindo à medida que o conforto do tecido aumenta e recebe meu corpo.)

foram se sucedendo, por esses longos seis ou sete ou oito (estamos em junho?) meses depois da nossa separação, esses pequenos deslizes, essas pequenas sabotagens. esses pequenos adeuzes das coisas nossas-dela, que, por sufoco, cansaço, carência ou displicência, não mais reconheciam sua morada ali, no meu apartamento.

na semana passada as taças, é claro, coroaram a despedida. vinho não é bebida que se toma só, sempre bradei, e nem tive pudores em usar as taças que ela havia me dado, desperdiçar um pouco no carpete e no edredon (era noite de lua cheia; a embriaguez comanda a precisão de outros gestos que não o de manter os copos em lugares seguros). foi pela manhã, uma manhã clara, brilho no rosto, louça acumulada. nem fui lavar as taças; só mudá-las de lugar para pegar o pó de café, e elas cederam. como numa dança de despedida desesperada, doce e consentida, estilhaçaram-se aos meus pés. no quarto ao lado, não se ouviu nenhum barulho; estanquei o corte que me fizeram durante a queda, embrulhei os cacos no jornal do dia, com uma mescla de alívio, satisfação e - confesso - o rosto quente e o coração acelerado. era isso, então. abri a porta do quarto, ouvi um suspiro, e me deitei ao lado de um corpo mais quente que o meu, cujo ritmo de respiração é que fazia todo o sentido do mundo.

Friday, June 11, 2010

timão, cimento e luz

Há sombra sob os pés.

Assombra aos olhos do velho
a moça com sombrinha,
tão só!,
a moça.

A calçada é cheia.
A rua é cheia.
O sol arde as retinas,
(menino espia do carro)

meu coração é farol.

Monday, May 31, 2010

o casamento

no início, sentira asco. não pelo odor, nem pela aparência; mas pela sensação de sentir o sebo em sua pele. as experiências com a pele transcendiam-lhe o sentido do êxtase e da lucidez. escrevia na pele; ensaiava o mundo e a vida; cobria-se com roupas comuns. subvertia qualquer comunicação. gravurava em si delicadezas e agressões em níveis de que só ela tinha plena compreensão. o brilho de olhos e a unha imunda. ia à padaria, trabalhava no jardim, tecia amigos invisíveis. mente em brasa e corpo em flor.

Saturday, May 22, 2010

quarta ou quinta-feira

na manhã clara, ressonância do sonho e acalanto de fundo, passo por mulheres e homens. destemidos, seguem obstinados o caminho corriqueiro ou excepcional. extraordinariamente, o sol se movimenta ao centro, e, ao centro e avante, também eu continuo, e valseio num assobio.

Wednesday, May 05, 2010

livro de artista

Retumba dentro de mim
qualquer coisa de dispersa -
me rouba tempo e saúde.
Não temo a toada voltar,
à galope, tato ou luz.

Cabe saudação ao tempo,
quando em mim, mulher no cio,
um balanceio arredio
(susto percussionado)
desafia em sina e trato
e em quentura, cirandeia
meu encantamento vadio.

Tuesday, May 04, 2010

tensão

caminhava entretida com tantos faróis que nem me dei conta que a subida acabara; ele me deteve pelo braço: 'é aqui'. nos despedimos, agradeci a gentileza dele ter me acompanhado, e encarei o prédio. não era tão assustador; seus 17 andares com dez janelinhas por andar me lembraram um documentário que havia visto na véspera, sobre o cotidiano num prédio não tão nobre numa região não tão decadente de outra grande cidade.
no estômago, o suco de abacate carregado no açúcar me nauseava; e qualquer música dançante dos anos 70 insistia em anacronicamente me acompanhar.
fumei algo entre um e três cigarros, esperei pelo tempo duma ambulância passar, e dos letreiros luminosos da farmácia oscilarem - era muita demanda de energia pra um lugar só.
telefonei: 'oi, tô aqui embaixo'.
'já tô descendo', era o ponto de não-retorno.

feriado

sonhei com teletransportes e gente vestida a rigor ao ar livre. era um dia frio na sombra, com sol que aquecia a pele por veias dos ramos das árvores viçosas. as pessoas sorriam sinceras, era um sonho bonito e cheio de calor.
acordei sem saber onde estava, sabe como é? que dia é hoje? do mês? da semana? que horas são? mas não é quarta-feira? jurava que a cama era virada pr'outro lado... como esse armário veio parar aqui? (aturdida, sei que falei, os olhos ainda fechados - não havia armário algum).
a resposta veio d'outro corpo, num antebraço macio dono de todo o sentido do mundo.
- bom dia.

Thursday, April 22, 2010

da velocidade

há momentos em que eu preciso esperar. não sei o quê, não sei porquê, ou pra quê. mas esperar, que eu sei que. esperar um evento, um acontecimento. algum estímulo, de dentro ou de fora, para seguir caminho ou me deixar levar. às vezes espero na procrastinação: no silêncio de quando o álbum acaba; na vadiagem obcecada por rastros virtuais; no domingo que se alonga por toda a semana e pesa debaixo dos olhos. n'outras vezes, espero freneticamente: chacoalho as pernas sem perceber, num ambiente lotado qualquer; entorno copo atrás de copo de cerveja; arrisco um cigarro; desvio olhares, arrisco fechar os olhos e aguçar outros sentidos. gosto mesmo é de quando essa espera cede lugar a outros tempos - mas aí já é acontecimento. o nascer do sol, especialmente, funciona como interlúdio na espera, e então, quando vejo, é entre baixar a guarda, os óculos de sol e os ombros, um pouco mais, que até a espera virou elemento de sinfonia. o novo desafio é descobrir (desvelando, dirigindo e orquestrando) se o movimento é de valsa, marcha ou fuga. se a modulação do tema, se há, é mais alegre ou menos rápida; se a expansão melódica respeita o tom e o andamento; quão ousada é a invenção. é evidente que me questiono com freqüência sobre quais são as permutações impossíveis, e também com certa freqüência concluo versando variações sobre o mesmo tema. mas se é sobre tempo que falo aqui, aquieta meu coração a certeza das novidades.

para ler ouvindo: resposta ao tempo, de aldir blanc. na interpretação, claro, de nana caymmi.

Sunday, April 18, 2010

a boa solidão

a boa solidão é feita da luz mais bonita
luz de tarde de inverno que brinda qualquer passante
imerso em qualquer leitura
desvela perfis cotidianos
dessa boa e luminosa solidão brota delicadeza e respiração lenta
a boa solidão é matéria-prima para
estar no mundo
presente
consigo
ver beleza e encanto no ordinário.

(era para ter sido publicado com uma imagem de Anahi DeCanio, mas não consegui fazer o upload; dá pra ver aqui)

Friday, April 16, 2010

apenas

era pra ser só mais um copo de cerveja, o colarinho impecável e a espuma se erigindo e equilibrando elegantemente por sobre toda a borda do copo americano. uma marcha transpassada, tocada pelo pianista do andar de cima; um telegrama do marido preso pelos militares; o alívio de passar na prova de epidemiologia mereciam muitos copos de cerveja. mas a ânsia brotou, talvez de um corpo moreno despertando-lhe asco enquanto a tentava seduzir naquele ambiente claustrofobicamente ensurdecedor, talvez aqueles músculos enrijecidos atentaram contra qualquer conforto interno, e também ela toda passou a se contorcer.
não havia nada de escatológico nos seus movimentos, só o impelir-se adiante. vomitou, correu, despelou-se à navalha, tosou o cabelo. precisava desvencilhar-se do mundo, esvaziar-se de si e da sua história.
amanheceu.
havia toda a área externa daquela pensão barata para limpar. ela não podia se dar ao luxo de se deprimir e perder as forças, não. jogou um balde d'água para esparramar da maneira mais uniforme possível, ainda que aleatória, a espuma concentrada no chão. esfregava sem se lembrar do colarinho impecável do copo de cerveja. é assim que as coisas se dissipam, ou nem se permite que se condensem.

inspirado numa cena de 'assédio', filme lindo, lindo, lindo, de bernardo bertolucci.

Sunday, April 11, 2010

variações sobre o mesmo tema

quer à primeira vista, quer na lenta transformação da amizade virando-alguma-coisa-diferente-que-não-sei-bem-o-quê-é; na concretização mais romântica do platônico, com direito a jantar à luz de velas; no hedonismo embriagado do dionisíaco uma-noite-e-nada-mais: todo amor já nasce viciado.
pode ser meticulosamente arquitetado, como os dados ocos com peso de resina precisamente no centro do lado do número seis; como pode ser também o vício que se instaura aos poucos, da maconha à heroína, e vai nos consumindo até tornar embaçada a distinção entre sujeito e objeto de desejo. até dissimular quem escolhe, quem decide, quem consome, e o quê é consumido.
então a diferença fundamental, e que deixa toda história de amor bonita, reside justamente nos desenrolares: se o amor já nasce viciado, no mesmo instante em que nasce, contudo, já é único. pois os instantes que vão se sucedendo em cada história são instantes-já, como diz clarice lispector. irreversíveis, intangíveis, impossíveis de não-serem, ao passo que, por definição, são. é ao mesmo tempo um alento e uma qualidade: mais ou menos como dizer que, se todo amor nasce viciado, as possibilidades de vício são geridas pela verdade idiossincrática de cada pessoa, ou melhor, de cada uma das pessoas que compõe o par (ou trio, quarteto, quinteto...) amoroso. As possibilidades de vícios existem na proporção em que cada um já tem sua história e seu modo de contá-la. Na medida em que não existem impressões digitais idênticas, ou em que em cada gole de cerveja reside uma novidade, uma aflição.
Na medida em que cada dança pode ser sincopada ou lenta, e, para cada caracterização existem ainda (no mínimo) um novo par de possibilidades que se abre. a dança lenta apaixonada numa noite quente de verão seguida de beijos lascivos e roupas ao pé da cama, o telefonema da ex no dia seguinte quando há outros braços ao redor, um cigarro entre vestir o sutiã e o par de sandálias, um suspiro e a meia-volta arrependida (porque a gente sempre volta pro vício, ou ele pra nós; a ordem nem importa), por exemplo, é só uma possibilidade da combinação de todos os elementos passíveis de permutação (incluídos aí todos os imprevisíveis - a esmagadora maioria). delícia de vício.

por acaso

ele usava uma máscara branca e preta e vestia suspensórios, o que, junto com seu andar e meneios de cabeça que eu logo supus característicos, confiavam-lhe um ar algo entre o kitsch e o blasé. nada mal para um bloco numa cidade tão provinciana, pensei comigo. é claro que não nos beijamos ao som de 'máscara negra'; eu queria muito menos carnaval e mais folhetim. foi no 'ô ô ô ô' de aurora que nossos olhos se encontraram, e antes de qualquer ladainha sobre sinceridade, amanheci enredada em seus braços.

para ler ouvindo: 'folhetim', de chico buarque.

Friday, April 02, 2010

de livros, chuva e encontros

ontem estava na sala dos professores da escola onde funciona o cursinho popular do qual participo e, entre uma aula e outra, folheei um livro de roland barthes, 'o rumor da língua'. o livro é uma coletânea de pequenos artigos, e cheguei a ele através da indicação de uma admirável professora. a idéia era ler um artigo em que ele fala de benveniste, lingüista, para tentar entender um pouco mais do paradigma em que repousa a etnografia de jeanne favret-saada, uma antropóloga em cuja obra estou mergulhada nesses tempos.

mas um dos motivos pelos quais realmente gosto de pegar livros na biblioteca - e não simplesmente tirar xerox de um ou dois artigos ou capítulos selecionados pelo professor, cujas cópias ficam à espera dos estudantes, numa pasta no xerox - é porque folheá-los realmente me é muito prazeroso. folhear um livro é como observar um quadro de diversos ângulos, espreitar a construção - meticulosa ou não - da obra concreta que está em nossas mãos. e eis que, folheando o livro de barthes, caí justamente num artigo em que ele fala da escrita e, mais detidamente, da leitura. de como a leitura é o locus da perda de controle do escritor sobre o leitor. porque a leitura, ou ao menos um tipo de leitura, suscita, por vezes, outros pensamentos em cascata na cabeça do leitor.

e barthes chama essa leitura da leitura 'levantando a cabeça'. desafia: quem nunca leu 'levantando a cabeça'? é a leitura em que nos acometem pensamentos muitos, é a leitura ao mesmo tempo desrespeitosa (o termo é de barthes), pois interrompe o texto a toda hora, e faz conexões possivelmente inimagináveis ao escritor, e fiel, passional, pois é ao próprio texto que o leitor sempre retorna, se nutrindo dele, em movimento de vertigem - aproximação e autonomia (agora os termos são meus).

e li o trecho do ensaio apaixonante e apaixonado (barthes não economiza ao demonstrar seu amor pela literatura) para um amigo meu, também ali, na sala dos professores do cursinho, terminando de preparar sua aula - de redação. li o trecho sobre a leitura 'levantando a cabeça', e ele disse que certa vez ouviu ou leu, de alguém ou em algum lugar, sobre a biografia de hannah arendt.: ela lia 'levantando a cabeça' com freqüencia. dizque ela, durante a leitura, era acometida por intensos fluxos de pensamento e iluminação, e largava-se na cadeira, as costas curvadas para a trás, o pescoço também em curvatura, a cabeça olhando para o céu. e assim permanecia. até resolver empertigar-se na cadeira e escreverescreverescrever.

eu ouvia atenta, e esse meu amigo continuou. disse que, segundo alguma psicologia, fazemos o movimento de olhar para cima quando buscamos clareza sobre abstrações e, para baixo, quando o esforço é dar concretude a essas abstrações. ele fez uma comparação linda: a melancolia ou a introspecção que nos acomete em dias de chuva.

fiquei pensando sobre isso e, hoje, sexta-feira santa, chove. essa lembrança me é muito forte: toda sexta-feira santa chove. aqui em casa não comemos carne, e também não tem bacalhoada - na minha família, a bacalhoada sempre foi aos sábados, porque 'fazer bacalhoada em dia de penitência, reclusão, introspecção, é contradição demais', diz sempre minha mãe, quando nos lembra o motivo de não comer carne: sacrifício. sem esbanjar, sem comemorar, sem efusiva festança, que o sábado de aleluia está aí pra anunciar. pois é, sexta-feira santa. introspecção, recolhimento. e chove. o movimento? a condensação das abstrações, tão densas, tão densas, tão densas, que caem, quer vultosa quer serenamente em direção ao concreto - ou ao coração, se assim preferirem (eu prefiro) - da terra.

e não pára por aí: escorrem e tomam a forma que convém ou a forma possível? as gotas se fundem com o vento (me encanta, desde muito menina, observar os encontros das gotinhas no vidro do carro, o carro em movimento e elas se encontrando, eu ficava na torcida para escorrerem mais lentas, mais rápidas, fundirem-se, se desfundirem); acomodam-se nas superfícies que, num deslize de retidão, recebem a água que vem dos céus; infiltram-se em solos mais ou menos arenosos; percorrem longos caminhos até seu fim provisório: o encontro das águas. porque seu fim último não existe. não há finalidade nem final, e isso a gente aprende desde criança: é tudo ciclo.

Saudades, de Mia Couto

Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
sói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono

história de um futuro amor

semana passada, dormiu nos meus braços; na noite de antes de ontem, hesitei entre ficar e sair, agonizei, quase chorei. acabei adormecendo enlaçada.
entre o dia em que conheci sua expressão de entrega e o dia em que não me lembro mais de seu rosto em alegria compartilhada, mora meu coração exausto.
ontem percebi que me despedi com ternura, e saí sem olhar pra trás, numa lágrima fugidia.
são coisas do mundo, minha nêga. eu não posso explicar meus desencontros.

alguma ternura

não fosse, meu amigo, alguma ternura, embalada com cuidado e persistência num embrulho divino de quase natal, não fosse alguma ternura, querido, sei que teria rendido.

cedido, rendido à terra, no susto ao encontrar a palidez dos que amamos envolta em flores.
e são lágrimas, gritos, acordes ressonantes que me acordam nas madrugadas, são ainda tremores e emoções em qualquer toque à contrapêlo, no receio de qualquer coisa nova, bela, sincera, no receio de qualquer carinho que seja.
e são também entregas lascivas, a pele em brasa, rubi coração em relinchadas; são espaços-todos-ocupados nos corpos que se querem encontro d'ossos, em tempos sincopados por suspiros e rouquidão.

noite a noite, há ternura. há alguma ternura, vinda de não sei onde, num repouso de cansaço, num enlace de dedos, numa cúmplice aprovação.

e há tempo para esquecer, há tempo para render-se ao desenfreio da solidão.

e há o dia. há o despertar. há coragem de novo, e recompensas todas.
pelo céu, pelo seu, pelo meu e pelos nossos.

Friday, March 12, 2010

tão logo a noite acabe

ela assumiu pra si o que queria, enfim, de mim. olhos marejados, tentei em vão explicar que o mundo pesa demais, não exija certezas de mim, te garanto minha sinceridade por alguns segundos latejantes, antes de suas dissoluções no não-nosso tempo-espaço. observei seus passos sem saber se decididos ou entorpecidos – pode a embriaguez preencher de solidez todo um gestual –, na noite tão clara e sem um farol. não foi difícil me levantar e seguir rumo, não. o peso já era outro, pelas pálpebras e lábios, mas não brotava do meu mais profundo interior, apesar de ir além do peso do mundo todo. sentia uma tristeza ritual, em resignada conclusão sobre a solidão (o esbarrar numa querida amizade em estado esfuziante me esquentou, sim, um pouco, – de leve – o coração). é que se desvencilhar, às vezes, é fácil demais. mas nem por isso menos triste.

Wednesday, March 03, 2010

mulher comum

sou uma mulher comum, como você. cruzo a avenida sob a pressão do imperialismo. poesia? cotidiana, embora em descompasso e corriqueiramente atropelada pelo ritmo do pau-de-arara. são nossos corpos de sonho e margarida que seguem, sangue e samba, enquanto gira inteira a noite sobre a pátria desigual. a vida nós a fazemos nossa, cantando em meio à fome e dizendo sim – em meio à violência e a solidão dizendo sim – pelo espanto da beleza. não digo que a vida é bela; tampouco me nego a ela – digo sim.

livre inspiração e adaptação, minha, sobre os poemas de ferreira gullar: 'homem comum' e 'digo sim'.

Saturday, February 27, 2010

seresta

um leve odor de gengibre e noz moscada, copos afastados, marcas liquorosas - os traços. sempre há cacos, espalhados, alguns ameaçam no chão. a música é toda novidade, e é novo também o beijo. é outro prazer, outra pele, outro orgasmo. amor novo, instiga e obriga a reconhecer outras cumplicidades e belezas. a entrega é entre a certeza e a descoberta. e o alívio pelo encantamento.

é que se eu cair em seus braços não há despertador que me faça levantar.

Saturday, February 20, 2010

"o que é fome"

com o perdão de uma possível piada, a fome é um tema latente pra mim. desde antes de entrar na faculdade de ciências sociais (que me seduziu no desejo também latente - e que hoje vagueia por caminhos esguios - de 'mudar o mundo'), a existência das pessoas que passavam fome e que morriam de fome me deixa consternada. e nessas cíclicas (e, com licença, latentes) tormentas, despertadas freqüentemente pelo noticiário, o mundo me doía.

mas até hoje nunca estudei sistematicamente 'o problema da fome'. li uma coisa ou outra do josué de castro; me arrependi por não ter cursado uma disciplina eletiva que trataria sobre o assunto... e hoje peguei nas mãos um livrinho de bolso, desses da coleção primeiros passos, da extinta (?) editora brasiliense: "O que é fome", de Ricardo Abramovay, hoje professor de economia na FEA/USP. vou escrever aqui um pouquinho sobre ele, e o assunto continuará.

O livro é curtinho, e dá pra ler muito rápido. Fiquei admirada com o modo como o autor organiza sua argumentação para desmascarar não só o supra-sumo do pensamento hegemônico travestido de senso comum que declara: "os pobres são culpados pela sua própria fome, porque não sabem se alimentar direito", mas também os argumentos cientificíssimos (digo, com respaldo na acadêmia e entre os cientistas da época), bio-geográficos (ou geofísicos?) - de que a alimentação nos trópicos é muito pobre em proteínas, ou, ainda, de que ela pode até ser suficientemente rica em proteínas, mas não atinge o nível mínimo de calorias para que as proteínas possam ser devidamente aproveitadas pelo organismo de cada mulher e de cada homem.

Esse último argumento (o argumento da chamada "fome calórica") corrobora a corrente malthusiana: se as calorias ingeridas não têm sido suficientes, é porque não há alimento suficiente no mundo. Porque o crescimento populacional seria da ordem de uma progressão geométrica (lembrei das aulas da minha querida professora de estatística, alô Verónica! - , de 2 para 4, para 8, para 16, para 32), enquando o desenvolvimento da produção agrícola seguiria um padrão de uma progressão aritmética (de 2 pra 4, para 6, para 8, para 10). Logo, salve-se quem puder!, logo logo não vai mais ter lugar pra todo mundo na Terra - neomalthusianos, meus caros, definam lugar, definam Terra, definam 'há lugar para todos hoje'.

Enfim, a real é que essa corrente de pensamento dominou inclusive as ciências até o começo dos anos 1960, e, bem, como métodos contraceptivos não eram exatamente bem-vindos, a solução era: controle populacional. N'outras palavras: guerra e crise. Porque nessas situações extra-ordinárias as pessoas morriam, e então, por mais paradoxal que isso possa parecer, a sobrevivência da espécie ficava garantida - tão natural quanto a mão invisível do mercado.

Por desencargo de consciência ou por um compromisso político maior com minhas verdades, vou pontuar aqui que o problema da fome não é um problema de produção de alimentos, nem da cultura alimentar de um determinado povo ou grupo social. O buraco é muito mais embaixo: falta distribuição. E não falta distribuição de alimentos por desorganização das autoridades, do Estado, ou do governo, ou por conta dos capatazes do campo que ainda têm suas próprias leis e são os senhores em seus territórios. Tampouco a distribuição é injusta por negligência ou falta de prioridade, nada disso, nada disso. As ações ou os braços cruzados por parte da governança nacional e internacional é interessada. Tem seus motivos por trás. E qual é o interesse maior que orquestra isso tudo? No próximo post vou comentar um texto do Josué de Castro, e aí veremos.

Thursday, February 18, 2010

'anda, rosa, vem me ver'

roupas espalhadas pelo chão não denunciam qualquer tranqüilidade d'alma. não, não. é a cinzura que se espalha pelo dia e minha ternura vadia que não encontra ocupação. tô por aqui. pode se achegar, que nem vai implodir a minha solidão. tanto cuidado é bobagem, me chama que eu vou num repique de águas claras, em corpo inteiro e mansidão.


imagem daqui

Tuesday, February 16, 2010

caso de carnaval

me encontra amanhã, virando a terceira esquina depois da última nuvem de chuva.

Monday, February 01, 2010

amador (ou "As horas nuas")

as últimas horas da tarde. o céu rodando em tonalidades por minuto. ainda é claro, e a lua, suavemente, intensifica sua presença entre azuis e alaranjados. num instante o laranja ainda solar cede ao brilho imponente, ainda que delicado, da lua quse-cheia.
respiro, olho, me calo, tento calar em pensamento. quero fotografar detalhes, fazer jus à riqueza. opto por fotografar na alma-coração, mantenho os olhos abertos e silencio também na visão. então sou toda a tarde que cai, sou eu toda a noitinha que vem.
o céu agora é nuvens cinzentas, o céu é todo ele de um azul cinzento, e também o mar escurece. mas nenhum dos cinzas é de tristeza, melancolia ou aflição. tampouco são acoplados de menos intensidade; não. são as horas vivamente sutis. a exatidão do olhar cambaleia, os corpos se movimentos com cuidado, leveza e desapercebida destreza.
são as horas das solidões profundas, dos suspiros sem desalento, e até dos encontros: é a hora mestra do amálgama entre lucidez e embriaguez, numa cúmplice e acolhedora meia-luz.

ps: o título entre aspas é referência ao livro homônimo de lygia fagundes telles, cuja leitura eu recomendíssimo - e que, embora não tenha sido referência pra esse meu escrito, foi por ele a mim lembrado, em sentimento.

Wednesday, January 20, 2010

das saudades, também

existem dois tipos de saudade, e ambos enchem os olhos de lágrimas. o primeiro é o que enche os olhos de lágrimas por dentro, com a alegria da memória e do reencontro breve, possível, certeiro. o segundo inunda a alma e transborda pelos olhos, por fora, escorre no rosto com a memória do convívio ou de qualquer lembrança ocasional, e com a certeza do nunca mais.

[de quebra, e porque o título desse post quase foi 'das saudades que deixo estar embora', vou colocar uma poesia minha aqui:]

Dissimulada
Stella Paterniani

Se perguntarem
- e perguntam -
das saudades que deixo estar
embora
descortinado olhar rechovendo,

diz do sol, das gentes, das ruas
- como te digo eu -
e diz que de mim resta
a vida con-
tudo
afora
caminhos de tenra solidão.

É que não deixo,
não sinto
(sinto)
toque de outra mão.

Diz do teu botão de rosa,
das ruínas que deixei.
Diz amor, cantar, pomar,
imensidão.
Diz do mar e da cidade,
(como arde!)
de metas nossas, desejos, de ti.
Detém-te
(e falo sério)
a dizer do tempo
dos tempos,
dos tempos.

Lavo minhas mãos.

Diz da estrada.
Lama e sonhos.

Tuesday, January 05, 2010

Redes

Encontro de confidências,
riso alto e sussurro.

Balanceio com vento ou impulso.

Corpo suspenso
no conforto do amparo
maleável.

Amizade é isso, então: solidão compartilhada.

Saturday, December 26, 2009

Flamingos

Subia os degraus do sobrado em silêncio, movimentos precisos na exata medida entre o soltar demais o corpo a cada passo e o tomar muito impulso a cada inspiração. Exalava equilíbrio, mas não durante as festividades. Não que precisasse extravasar, não comprava a balela freudiana – não por amargor ou insegurança, mas por outro tipo de incompatibilidade, que especialmente nesse fim de ano aflorou: beleza. Necessidade e desejo de beleza. Não via a beleza nas medições, nas solícitas contenções e dispendiosas contendas, não; a via nos extravasares. Drama barato a olhos insensíveis; profundo amálgama eu-Outro aos mais cuidadosos. Os desavisados que não suspeitassem da destreza em não calcular sentimentos até ofereciam mimos e regalos, que de bom grado aceitava, ruborizando. Mas o que solapara, nesse Natal o que solapou em água e flor toda encenação foi a percepção do permitir-se encantar.

Friday, December 18, 2009

coração febril, abraço e amargura

acontece que não; não estava acordado que daquele encontro meio lascivo, primeiros toques sem ponderar limites, quentura dos corpos solapando interstícios, sem meias-inteiras-palavras, quem diria que desse arroubo embriagado ficariam olhares tão doces, apaixonadamente cúmplices? e brotaria – não se sabe de onde – algum pudor, timidez até, ansiedade. tempo de arrepio ao roçar de lábios, chumaços de entrega em carinhos incontestes. acontece que dançar conforme a música também é se permitir ser conduzida, e conduzir sem as mãos. e brotou., quer dizer que brota amor em meio a medos, traumas, e receios?, em meio a perdas, saudade, muita dor e lágrima? acontece que sim, brota, sim, acontece.

liberdade é quando eu rio na vontade do assobio
faço arte com pandeiro, matemática e loucura.
serenatas do Brasil, eu serei três serenatas:
uma é o coração febril, a outra é o coração de lata,
a terceira é quando eu crio na canção um desafio
moraes moreira

Sunday, November 29, 2009

militância, política e moral(idade)

na sexta-feira (dia 27/11/09), fui ler a folha de são paulo, depois de ter dado a última aula de literatura do ano no cursinho popular do qual faço parte.
me deparei com uma página inteira destinada a um artigo de césar benjamin supostamente sobre um filme sobre lula, que deve ser lançado em breve (tinha ficado sabendo da existência do documentário naquele mesmo dia, também lendo o jornal). não sou do tipo que desconsidera a história de vida dos militantes, e tive pra mim o cesinha como um puta militante estudantil no final dos anos 1960 e durante os anos de chumbo da ditadura brasileira. sabia que ele tinha saído do PT e depois do PSOL, mas não sabia mais por onde andava, se continuava militando. gostei de ver seu nome (me traz alguma familiaridade, uma sensação de quentura, tenho certeza de que é porque quando li '1968: o ano que não terminou', de zuenir ventura, no auge de meus anseios revolucionários mais brutos em mente, alma e coração, o cesinha (ou o que o zuenir dizia dele) fazia meus olhos brilharem), e li o artigo numa sentada.

e confesso que fiquei atordoada. ler sobre prisões, tortura, sofrimento humano e situações-limite - ele relembra, dentre outras coisas o tempo que ficou preso em solitárias -, sempre me atormenta (foi quase um martírio ler 'brasil: nunca mais').

pra mim, é inegável que o artigo é de uma sensibilidade que comove, sem ser banal ou clichê. mas não direito por que me intriga perceber que o cerne da polêmica por ele levantada é se é verdade ou não que lula tentara abusar de um menino quando esteve preso. se for verdade, guardadas as devidas proporções, temos algo como o 'caso polanski brasileiro'. se não for, cabe pensar também duas coisas: a) ficou encrustrado na vida do então adolescente cesinha a história de deboche, a piada (ainda que de mal-gosto) do então pré-candidato petista, e, verdade ou não, a história atormentou o mais jovem, e tornou-se parte dele (não vou tratar de como discursos que remetem a traumas - além, é claro, dos própriso traumas - nos transformam, moldam, compõem); b) cesinha, que saiu do partido dos trabalhadores, foi para o partido socialismo e liberdade e posteriormente também com este rompeu, e taticamente escreveu esse texto como mais um elemento de uma campanha anti-lula. bem, é claro que essas duas hipóteses que levantei podem se embrenhar, e matizar as motivações que levam alguém a escrever um texto como esse. de qualquer modo, não estou aqui tentando investigar seu espírito e encontrar suas motivações mais profundas para a produção do artigo.

mas não dá pra não pensar em narrativas, em como narrativas fazem história (o que lula contou ou deixou de contar; o que cesinha ouviu do que foi dito ou não-dito) e são história (o que ele escreveu no artigo; a repercussão do artigo). não dá pra não pensar nos perigos e perversidades de elaborar o passado, de olhar para ele em retrospecto (e olhamos para ele deoutra maneira que não em retrospecto?). e na combinação entre as urgências de elaborar o passado em função do presente, articulado (também me parece que não tem como ser de outro modo) com vivências afloradas (quer também tidas em retrospecto - a lembrança de césar benjamin de estar preso; a lembrança da conversa com lula anos atrás; quer presente ainda pouco elaborado - a saída de cesinha do PT, e, posteriormente, do PSOL; quer prospectos - o final do mandato de lula, a possibilidade da continuidade de sua política após as eleições).

aí também não dá pra não pensar na tensão entre público e privado - e até onde vai o limite de exposição de intimidade e a politização da vida privada. se é verdade que o presidente da república tentou abusar de um menino na prisão, por que isso não veio à tona antes? estar na prisão também se configura num estado de exceção, tanto no que diz respeito às regras próprias de se estar lá, como à sociabilidade específica entre os presos. o que acontece por lá, morre lá? é passível de entrar no debate público e político, anos depois? e se não foi verdade, mas manipulação da história, ou, ainda, qualquer espécie de 'licença literária'? nesse sentido, o caso também se assemelha (embora sob espectros distintos) à tentativa de transformar em escândalo o envolvimento de dilma roussef no seqüestro político do embaixador americano, charles elbrick, também nos tempos de ditadura no brasil.

ah, os tempos de ditadura do brasil. o tempo em si já era um estado de exceção. e muito da discussão sobre o que o artigo de césar benjamin tomou um viés moral. como falar de moral e moralidades num tempo em que as pessoas eram torturadas, silenciadas e assassinadas por discordar da política nacional?

por fim, queria só deixar claro que não acho que seja irresponsabilidade política césar benjamin ter escrito o que escreveu. tampouco ingenuidade (os ex-petistas anti-lula sabem que é sutil ficar ou não perversamente mancomunados com os direitistas, não é possível que não saibam!). e eu também não tenho culhões pra acusar o benjamin de direitista nem de neoliberal - por tudo o que disse ali em cima, que, sinteticamente, tem a ver com a história do cara. e aos que argumentarem 'veja a história de vida e política de lula, e hoje ele é neoliberal', tenho minhas ressalvas. a coisa não é tão preto-no-branco assim. é claro que a política nacional tem alinhamento com a política neoliberal, mas daí a dizer que 'lula é neoliberal', chapado e desistoricizado assim, me incomoda, e não resolve o problema. antes de quaisquer acusações, gente, pelamordedeus: eu não sou lulista. a real é que eu queria entender a geração dos anos 70, dos anos 80, dos anos 90... e, bom, no fim das contas, o que fica é a angústia da e na esquerda. e a angústia de perceber que o problema de ser real ou não [a tentativa de abuso de lula pra cima do menino na prisão] vira quase secundário. ô se assusta, tudo isso.

Monday, November 23, 2009

amarelada, flana, ainda

a tríade silêncio-fala-pensamento prega peças, desafia, surpreende e me encanta.
numa dança das mais sutis, o tom do mar se apresenta como amigo do peito; a delicadeza das palavras desponta sem pedir licença pelas serenas frestras de expectativa; há permissão, desejo, calmaria e notadamente meu corpo. o sol enlameia como o vácuo entre o chinelo bem pisado e a terra molhada; a noite cai amena, desapercebida que estou com seus cabelos. alguma santa chuva recém-nos-fita e envolve. cedemos, e há sorriso.

Wednesday, November 18, 2009

cinco meses

And the days are not full enough
And the nights are not full enough
And life slips by like a field mouse
not shaking the grass.
Ezra Pound

luto.

(e a saudade dói latejada.)

Tuesday, November 17, 2009

vernal

brindo cada copo de cerveja, água ou café. brindo e olho nos olhos, mas nem desanimo se não há encontro.
levanto os ombros quando tímida, ensaio um olhar de esgueio, sorriso de canto da boca e a mão entre os cabelos e o pescoço, algo provocante enquanto noto e digo ou não digo? da beleza do céu de manhã cedo, bruma leve e carinho na pele. me enrolo em termos antigos, busco outros músculos e vernáculos.
já é noite quando cedo ao fantástico da pele e a outros dançares. são ritmos e tons que, sonoros, táteis, visíveis, me fazem sentir cheia de vida. de memória, de história, de porvires. reconheço as dores e o alívio que elas me deram a um dos meus medos maiores: esquecer. hoje, sei que nem tempo nem amor nem dor nem saudade nem falta nem além faz(-me) esquecer. as reminiscências floreiam todo o tempo, e o encanto não é menor. assusta menos, saber que existe tanto encrustrado n'alma e no coração e que isso não conforma nem molda: compõe da maneira mais original e bonita. entalha. paciência de ourives, afinco de agricultor e certeza de mãe-de-santo. por aí.

Thursday, October 29, 2009

não quero tinta

no youtube, se você clica em 'mais informação', a informação aparece, e o lugar em que você clicou vira 'menos informação', e aí você clica, e a informação desaparece, sem deixar rastro nem impactar.

eu quero um botão desses.

Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Nem nessas coisas do oriente
Romances astrais
A minha alucinação
É suportar o dia-a-dia
E meu delírio
É a experiência
Com coisas reais.
Belchior, Alucinação

Wednesday, October 28, 2009

(sem título)

estou aqueles cachos sentados observando a festa.

os olhos da escorpiana desafiam em ode a Baco desapercebida se oferece à música encantada sons e corpo-tambor e acordes e notas sustentadas no sorriso.

sedução alucina.

me esqueço das outras mulheres que amei, desejo meu é permanente discrição – não ouso interromper essa profusa comunhão.

duas taças, pouco mais distantes, brindam. nem são de cristal, mas o encontro ecoa.

Tuesday, October 27, 2009

de idade e ternura

meu pai tem uma mania, anunciada e assumida, de encher de penduricalhos a casa. trazer de casa viagem ou passeio (e ele pede, e nós sempre trazemos) enfeites, ímas de geladeira, qualquer lembrança pré-fabricada pra turista ou colhida na rua sob olhos desatentos de viajante andarilhesco. às vezes vem até algo travestido de funcionalidade (trouxemos telhas e panelas de barro do espírito santo, e o peixe fica mesmo uma delícia). já me irritei e já tirei sarro dessa mania, mas hoje vejo que me faz tanto sentido! ter a casa impregnada de história, despretensioso e acolhedor assim.

Monday, October 19, 2009

desengano

tudo bem que seu beijo é seco
fica.
eu hoje prefiro chuva à solidão

Sunday, October 04, 2009

domingo

vida e morte se enlaçando
enlameando-nos no escracho
do escancaro escapulido
à meia-luz à queima roupa

um cesto de vime e na quina
um cordão dependurado
jaz desbotados dizeres

movimento e ventania
benção flores luzidias

Saturday, October 03, 2009

cenariando

Desde o princípio que fui independente, de uma maneira falsa. Não tinha necessidade de ninguém porque queria ser livre, livre para fazer e para dar só de acordo com os meus caprichos. Mal esperavam ou exigiam alguma coisa de mim, recusava e daí não arrancava. Foi essa a forma que a minha independência assumiu. Por outras palavras, fui corrupto, fui corrupto desde o princípio. Dir-se-ia que a minha mãe me dera um veneno como leite, um veneno que nunca me abandonou o organismo, apesar de ter sido desmamado cedo. Parece que até mesmo quando ela me desmamou me mostrei completamente indiferente. A maioria das crianças revoltam-se, ou fingem que se revoltam, mas eu estive-me nas tintas. Ainda usava cueiros e já era filósofo. Era contra a vida por princípio. Que princípio? O princípio da inutilidade. À minha volta toda a gente lutava e se debatia. Pessoalmente, nunca fiz sequer um esforço.
Henry Miller, Trópico de capricórnio

Queremos saber,
O que vão fazer
Com as novas invenções
Queremos notícia mais séria
Sobre a descoberta da antimatéria
e suas implicações
Na emancipação do homem
Das grandes populações
Homens pobres das cidades
Das estepes dos sertões
Gilberto Gil, Queremos saber

Era cansaço, puro cansaço, e não havia meios de combatê-lo. Não havia férias, loteria, banho de mar, búzios ou ajuda de feitiçaria. Olhava ao redor e a poeira nos livros despertava culpa; as roupas na gaveta urravam por repaginação; as moedas acumulavam-se e ocupavam espaços outrora de anotações e rascunhos, por excelência. Antigripais, brincos, canetas abertas, desenhos infantis e fotografias com sorrisos. Cartões postais delicados, um santinho de algum Bodhisattva apoiado na luminária que só acendia para dissimular dos outros moradores da casa que ainda estava acordada às quatro da manhã (não ousava acender a luz do teto). Muitos papéis espalhados, com notas que ela provavelmente jamais (re)leria. Breve composição do cenário.
(fragmento meu)

Wednesday, September 30, 2009

à guisa de excesso

a real é que é de tombar a inércia que me toma quando fico defronte ao computador. ou será que meu quarto é que está com más energias? talvez jogar coisas fora, trabalhar um feng shui, colocar mais cactos, talvez.
é excessivo, sim, o trânsito, mas também são excessivas as buzinas e a irritação que toma conta. assim como reina o excesso de secura nessa cidade tão vertiginosamente ampla. são excessivas as drogas, os desejos de embriaguez, o desconhecimento de olhares e os compartilhares dos corpos. são excessivos constrangimentos de linguagem, máquinas no dia-a-dia, compromissos e lembretes. tanta excessividade me cansa, me consome, e de repente não mais me reconheço; perco o que me constitui? alento: ao menos intensamente, desboto.

Saturday, September 26, 2009

(sem título)

alguém me ensina a organizar a vida? ter que fazer escolhas é um lance muito difícil.

Friday, September 25, 2009

hermann hesse

Tal qual cada flor fenece
e toda juventude cede à idade,
floresce cada patamar da vida.
Toda sabedoria e toda virtude
também florescem a seu tempo
e não devem durar eternamente.
O coração precisa estar, em cada patamar da vida,
predisposto à despedida e a novo início
para, na coragem e sem pesar,
entregar-se a outras novas ligações.
E em todo começo reside uma magia
que nos protege e nos ajuda a viver.
Temos de transpor, dispostos, espaço a espaço,
e a nenhum nos apegar como a uma pátria.
O Espírito Universal não nos quer prender e limitar:
quer erguer-nos degrau a degrau, quer nos ampliar.
Mal nos habituamos a um ambiente,
sentindo-o familiar, ameaça o acomodar-nos.
Só quem esteja pronto a partir e viajar
talvez escape do hábito paralisante.
Talvez ainda a hora da morte
nos envie, jovens, a novos espaços;
o apelo da vida a nós jamais há de findar.
Vamos lá, meu coração: despede-te e convalesce.

Sunday, September 20, 2009

diz que é sem compromisso

flores amarelas, alguma terra no chão, clima ameno, céu profundo de pré-primavera, até as pintas vermelhas do colo tão branco se eriçam quase no encontro do ombro com os pescoços.

crianças tranqüilas um gato que roça olhos ariscos e cúmplices

algum carinho, certo na discrição e nos limites. desmancha em flor, laço roxo do vestido.

Friday, September 04, 2009

forjei asas nos meus

quando o acaso é de pétala, e o silêncio assombra a madrugada recém-descoberta. letargia e ressaca, ainda que haja fórceps.

Condicional - Los Hermanos
(Rodrigo Amarante)

Quis nunca te perder
Tanto que demais
Via em tudo o céu
Fiz de tudo o cais
Dei-te pra ancorar
Doces deletérios

Eu quis ter os pés no chão
Tanto eu abri mão
Que hoje eu entendi
Sonho não se dá
É botão de flor
O sabor de fel
É de cortar.

Eu sei é um doce te amar
O amargo é querer-te pra mim
O que eu preciso é lembrar, me ver
Antes de te ter e de ser teu, muito bem

Quis nunca te ganhar
Tanto que forjei
Asas nos teus pés
Ondas pra levar
Deixo desvendar
Todos os mistérios

Sei, tanto te soltei
Que você me quis
Em todo lugar
Lia em cada olhar
Quanta intenção
Eu vivia preso

Eu sei, é um doce te amar
O amargo é querer-te pra mim
Do que eu preciso é lembrar, me ver
Antes de te ter e de ser teu
O que eu queria, o que eu fazia, o que mais?
Que alguma coisa a gente tem que amar, mas o quê?
Não sei mais

Os dias que eu me vejo só
São dias que eu me encontro mais
E mesmo assim eu sei tão bem
existe alguém pra me libertar.